Caso Daniel Silveira acumula controvérsias jurídicas e políticas; entenda

O caso do deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) acumula ao longo de mais de dois anos controvérsias jurídicas e políticas em temas sensíveis à democracia.

Considerando apenas seu último episódio, o perdão concedido pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), já há uma discussão inédita sobre o alcance do instituto do indulto, que agora extrapola o meio jurídico.

No decorrer do caso, uma das leis que baseou a denúncia contra Silveira, a Lei de Segurança Nacional (LSN), foi revogada pelo Congresso, criando mais um complicador para o processo.

Assuntos como liberdade de expressão, imunidade parlamentar e possíveis excessos do STF (Supremo Tribunal Federal) também permeiam o processo que teve início no chamado inquérito dos atos antidemocráticos.

INQUÉRITOS DOS ATOS ANTIDEMOCRÁTICOS
A condenação de Silveira pelo STF ocorreu em uma ação penal que se originou de uma denúncia apresentada pela PGR (Procuradoria-Geral da República), no âmbito de uma apuração que ficou conhecida como inquérito dos atos antidemocráticos.

Aberto em abril de 2020, o inquérito tinha como objetivo investigar aliados do presidente envolvidos em manifestações que defendiam o fechamento do STF e do Congresso Nacional, além da volta da ditadura militar. Sua instauração ocorreu após solicitação da PGR.

A denúncia da PGR contra Silveira foi apresentada em fevereiro de 2021, um dia depois de o ministro do STF Alexandre de Moraes ter determinado a prisão em flagrante e inafiançável do deputado, após a publicação de vídeo com ameaças à corte e a seus ministros.

A denúncia considerou também manifestações feitas em outros dois vídeos publicados por Silveira no fim de 2020. O STF aceitou a denúncia em abril de 2021, e Silveira passou então à condição de réu.

Prisão em flagrante

No vídeo considerado por Moraes para a prisão, o deputado, em tom desafiador, fez várias referências ao período da ditadura militar, falou em venda de sentenças e a possibilidade de agredir os ministros do Supremo.

A posição de Moraes de decretar prisão em flagrante por conteúdo postado em redes sociais gerou polêmica entre especialistas à época. Assim como o fato de a prisão ter sido decretada sem provocação da PGR ou da Polícia Federal.

Em 19 de fevereiro, porém, a Câmara confirmou, por 364 votos a 130, a decisão do STF de manter Silveira preso.

Medidas preventivas

Da primeira prisão ao julgamento, houve diversas decisões alterando as medidas preventivas tomadas contra Silveira. Depois de ter a prisão em flagrante convertida em domiciliar, em março de 2021, o deputado voltou ao cárcere a pedido da PGR, em junho, sob a acusação de violar as regras de uso da tornozeleira eletrônica.

Em novembro, ele foi novamente solto, mas sob proibições diversas. Entre outras, não poderia usar as redes sociais, conceder entrevistas sem autorização judicial ou manter contato com investigados em outros dois inquéritos.

Para o advogado de Silveira, o parlamentar estava sendo proibido de exercer plenamente seu mandato, por ter sido impedido de conversar com seus eleitores e ir a outros estados.

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E IMUNIDADE PARLAMENTAR
Na ação contra Silveira, o que estava em questão era se as falas do deputado configurariam três crimes: coação aos julgadores do STF; incentivo à prática de atos para tentar impedir ou restringir a atuação da corte suprema, com emprego de violência ou grave ameaça; e também de incitação à animosidade entre as Forças Armadas e o STF. O deputado acabou condenado pelos dois primeiros e absolvido do último.

No caso do deputado, contudo, por ser um congressista, para além do debate sobre liberdade de expressão –comum a qualquer cidadão– havia mais um fator que deveria ser considerado: a imunidade parlamentar.

Eleito pela primeira vez como deputado federal em 2018, Daniel Silveira invocou as prerrogativas da imunidade parlamentar até mesmo para usar as dependências da Câmara de modo a evitar a execução de medidas determinadas pelo STF.

A condenação imposta a ele é inédita no STF desde a promulgação da Constituição de 1988, uma vez que sentenças contra parlamentares no exercício do mandato desde então envolveram variados tipos penais, mas nenhuma delas por fala.

A Constituição diz que os parlamentares são invioláveis, civil e penalmente, por suas opiniões, palavras e votos.

Processo na Câmara

Na Câmara dos Deputados, o deputado até agora está se livrando da punição de perda do mandato, uma vez que o Conselho de Ética da Casa aprovou em julho do ano passado um parecer que recomenda a aplicação da penalidade de suspensão por seis meses do mandato.

Em resposta às manifestações contrárias à sua recomendação no conselho, o relator do caso no colegiado, Fernando Rodolfo (PL-PE), defendeu seu parecer.

“Imunidade parlamentar não é impunidade. A imunidade parlamentar, quando foi pensada lá atrás, não foi para dar respaldo a esse tipo de comportamento do deputado Daniel. Mas penso que a perda de mandato é uma medida extrema”, afirmou.

Apesar do discurso aparentemente contra a conduta do deputado, Rodolfo escreveu em seu parecer: “temos a convicção de que ele agiu nos limites do exercício de seu mandato, estando albergado pela imunidade material que lhe é conferida pela Constituição Federal”.

A decisão final na Câmara será do plenário da Casa, mas o tema precisa ser levado ao colegiado pelo seu presidente, Arthur Lira (PP-AL).

Enquanto a Câmara não define a questão, suas dependências já foram palco de situações inusitadas no caso.

No final de março, Silveira chegou a passar uma noite no plenário da Câmara para escapar de ordem de colocação de tornozeleira dada por Moraes.

Silveira só acatou a decisão após Moraes estipular multa diária de R$ 15 mil e bloqueio de contas bancárias em caso de descumprimento da medida.

LEI DE SEGURANÇA NACIONAL
Entre os três crimes que eram atribuídos a Silveira na denúncia da PGR, dois deles estavam previstos na Lei de Segurança Nacional (LSN).

Aprovada em 1983, ainda na ditadura, a lei era vista por muitos como um entulho autoritário, criada sob a lógica de silenciar críticos.

No entanto, diante do contexto de ataques às instituições no governo Bolsonaro, passou a ser vista por parte da comunidade jurídica, política e da sociedade civil também como uma ferramenta legal para defesa da democracia.

Sob esse entendimento é que a PGR empregou a LSN na acusação contra Silveira em fevereiro de 2021.

Porém, em setembro daquele ano o Congresso revogou a LSN.

Na ocasião, os legisladores consideraram que algumas condutas previstas nessa lei deveriam continuar sendo passíveis de punição, como a de tentar impedir o livre exercício dos Poderes.

Então a solução encontrada por eles para evitar um vácuo foi incluir essas condutas no Código Penal, o que foi feito por meio da lei 14.197/2021.

Para a defesa de Silveira, entretanto, o fato de a LSN ter sido revogada faria com que o deputado não pudesse mais ser punido, já que supostamente teria praticado um ato que já tinha sido excluído da legislação.

O entendimento da PGR, por outro lado, foi o de que a conduta imputada ao deputado estava abarcada no texto do Código Penal, conforme a nova lei aprovada pelo Congresso em setembro de 2021, posicionamento que foi adotado também pela maioria dos ministros do STF no julgamento do deputado.

PUNIÇÃO PELO STF COM POSSÍVEIS EXCESSOS NA PENA
Silveira foi condenado no dia 20 de abril a oito anos anos e nove meses de prisão, em regime inicialmente fechado pelos ataques feitos a integrantes do STF.

Além da imposição de pena, os magistrados também votaram para cassar o mandato do parlamentar, suspender os direitos políticos (o que o torna inelegível) e determinar o pagamento de multa de cerca de R$ 192 mil.

Para o ministro Alexandre de Moraes as intimidações foram muito graves e tiveram um grande potencial de causar situações perigosas já que circularam na internet e foram divulgadas por veículos de mídia e entre os seguidores de Silveira.

Entretanto, especialistas em direito criminal avaliaram o tamanho da pena de prisão como fora do padrão.

A advogada Marina Coelho Araújo, presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), afirmou que “se a gente considerar que no Brasil a pena do homicídio simples é de 6 a 12 anos, e o deputado foi punido com 8 anos e 9 meses, a gente pode pensar que dentro do sistema essa é uma pena altíssima”.

A defesa de Silveira afirmou estranhar o fato de as “vítimas” serem os próprios julgadores do réu que supostamente cometeu o crime. “Essa violação, no meu entendimento, ao sistema acusatório, é a premissa maior desse julgamento” disse o advogado Paulo Faria.

Antes do julgamento, o deputado ingressou com pedido de suspeição contra 9 dos 11 integrantes da corte, fazendo exceção apenas aos dois ministros indicados por Bolsonaro.

O presidente do STF Luiz Fux negou o pedido, dizendo que os elementos trazidos não se enquadravam em nenhuma das hipóteses de impedimento ou suspeição. “Na narrativa da arguição da suspeição e impedimento, o iminente advogado suscita apenas inconformismos com as decisões judiciais adotadas.”

No mesmo dia do julgamento do STF, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), apresentou recurso ao STF, em um caso de 2018 de outro deputado, para que fique definido que é do Congresso a última palavra sobre a cassação de um mandato parlamentar.

INDULTO
No dia seguinte ao do julgamento do STF que condenou Silveira, o presidente Jair Bolsonaro publicou um decreto concedendo um indulto individual, benefício também conhecido como graça, para perdoar todas as punições aplicadas pela suprema corte ao deputado.

A principal controvérsia a surgir no meio jurídico foi se Bolsonaro poderia ter concedido o perdão da pena de prisão a um aliado político sob as justificativas de que a prisão dele representa uma afronta à liberdade de expressão e de que o presidente pode usar essa via jurídica para corrigir uma decisão de outro Poder, no caso o Judiciário.

Segundo parte dos especialistas em direito criminal e constitucional, esses motivos apresentados por Bolsonaro tornam o decreto inconstitucional. Dizem que, para ser de acordo com a lei, o perdão deveria ter razões humanitárias, como uma doença grave ou terminal, como ocorre tradicionalmente.

Mas outra corrente entende que a Constituição concede amplo poder ao presidente na definição do indulto, e não impõe limites para a medida.

Flávio Ferreira e Renata Galf/Folhapress

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