Ômicron sobrecarrega unidades de saúde e gera onda de agressões a profissionais

Para especialistas, população está esgotada e desconta insatisfação em médicos e enfermeiros
Foto: Getty Images
No pronto-socorro de um hospital público em Maceió (AL), a médica Marília Magalhães, 33, e seus colegas têm atendido pacientes com dois seguranças na porta do consultório. “As pessoas chutam e batem na porta, gritam, ameaçam a equipe. Algumas se comportam de forma animalesca com profissionais esgotados, que estão trabalhando sem parar há dois anos nessa pandemia, muitas vezes com carga horária triplicada para ocupar o espaço dos colegas que estão doentes”, diz ela.

No centro de saúde da Praia dos Ingleses, em Florianópolis (SC), a enfermeira Andressa Albrecht, 35, levou um soco no olho no início do mês ao tentar separar uma briga entre pacientes iniciada porque os dois médicos do posto interromperam o atendimento por alguns minutos para tentar estabilizar um doente grave trazido pela ambulância.

“No fim do expediente, eu e o segurança patrimonial, que também foi agredido, tivemos que sair da unidade escoltados por policiais. No dia seguinte, esvaziaram os quatro pneus do meu carro”, relata.

No Rio de Janeiro, capital, o enfermeiro Ronaldo, 40, também precisou chamar a Polícia Militar após sofrer agressões físicas. As verbais já viraram rotina. “As pessoas nos chamam de vagabundos, dizem que são elas que pagam os nossos salários. Chegam quando a unidade já está fechada e querem ser testadas, gritam, xingam.”

Em uma UBS na zona oeste de São Paulo, o médico de família Lucas Guilherme de Lima, 29, já perdeu as contas das vezes em que foi ameaçado de morte e de agressões desde o início deste ano. “O usuário vem e te ameaça de te pegar no final do plantão. Geralmente, é o cara hígido [saudável], encrenqueiro, de 20, 30 anos, que quer passar na frente dos outros e não aceita que tem outras pessoas com mais prioridade.”

Com a explosão de casos de ômicron e de gripe influenza, prontos-socorros e unidade de saúde que já operavam além do limite viram a situação piorar ainda mais com o aumento da demanda e o afastamento de funcionários contaminados. Em São Paulo, a Secretaria Municipal da Saúde registrava até a última quinta (27), 4.707 profissionais afastados por Covid ou síndrome gripal —o triplo do início do mês (1.585).

A demora no atendimento tem gerado revolta na população e aumentado os casos de violência contra profissionais de saúde. Os relatos vêm de todo o país e afetam, principalmente, médicos e pessoal da enfermagem da APS (Atenção Primária à Saúde) e dos pronto-atendimentos.

Não há estatísticas que mensurem essa violência atual, mas, segundo levantamento recente do Coren (Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo), com 252 trabalhadores do setor, 40,9% dos profissionais relatam ter sofrido agressões verbais e outros 9,5% já foram vítimas de ataques físicos. O Sindicato dos Médicos de São Paulo também está levantando esses dados.

“Violência a gente sofre diariamente, mas agora, com esse tsunami da ômicron, aumentou muito. A maioria dos usuários reclama do tempo de espera, acha que a espera de seis horas é culpa do médico, do enfermeiro”, diz Lima, que já chegou a atender 120 pacientes em 12 horas de trabalho.

Há também muitos afastamentos de colegas por burnout, segundo a enfermeira Glaycie de Abreu Branco, 41, que trabalha na mesma UBS de Lima. “É muita sobrecarga de trabalho, poucos funcionários para a demanda e há um esgotamento mental geral. São dois anos nessa pegada louca”, diz ela.

A sobrecarga de trabalho, o esgotamento físico e psíquico dos profissionais da saúde e os problemas estruturais (falta de medicamentos básicos, EPIs, testes, papel higiênico, entre outros) têm sido denunciados reiteradamente pelo Sindicato dos Médicos da capital, que já aprovou indicativo de greve, mas a paralisação foi suspensa por decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Para Branco, que está escrevendo sobre o tema da violência contra a enfermagem, muitas agressões ocorrem pelo fato de a população não entender que as equipes de saúde têm que seguir protocolos do Ministério da Saúde com critérios e prioridades para atendimentos no SUS.

“Tem gente assintomática que quer fazer teste da Covid para viajar. Aí a gente tenta explicar que o SUS não pode bancar o teste nessas situações e aí a pessoa já fica nervosa, te xinga e acha que você é que não quer fazer”, conta a enfermeira.

Para Gabriela Lotta, professora de administração pública da FGV (Fundação Getulio Vargas), o aumento de violência pode ter várias causas, que demandam diferentes intervenções.

Ela lembra que a população também está esgotada, após dois anos de pandemia, e isso se reflete em aumento de ansiedade, em dificuldade de interação social e outras questões que podem gerar uma reação negativa contra os profissionais da linha de frente.

“Há relatos no mundo todo mostrando como os profissionais da linha de frente dos serviços [não só de saúde], por serem as primeiras pessoas com quem interagimos, estão sofrendo a consequência desse longo período de distanciamento e tendo que lidar com pessoas com baixa tolerância e muito nervosismo.”

Mas, para os especialistas, seria possível minimizar essa hostilidade contra profissionais da linha de frente da saúde se os serviços estivessem mais bem preparados para enfrentar essas novas demandas.

Segundo Michelle Fernandez, pesquisadora do Instituto de Ciência Política da UnB (Universidade de Brasília), a sinalização vinda dos Estados Unidos e da Europa de que a chegada da variante ômicron no Brasil sobrecarregaria os serviços de saúde estava clara, mas foi ignorada por muitos gestores.

“Para a população, os profissionais de saúde são a cara do estado. As pessoas chegam em um serviço de saúde, demoram horas para ser atendidas e descontam em quem está na linha de frente. Os profissionais, por sua vez, estão vulneráveis, se contaminando muito, se sobrecarregando para dar conta de cobrir os colegas doentes.”

Segundo ela, os profissionais de saúde passam hoje por um processo de desumanização, muitas vezes sem conseguir almoçar, ir ao banheiro, tudo em prol do “bom funcionamento da unidade de saúde”. “Mas o bom funcionamento tem que ser garantido por quem está na gestão, pensando em toda essa dinâmica.”

O episódio de violência em Florianópolis ilustra bem isso. O centro de saúde da praia do Ingleses, o maior da cidade, atende normalmente a uma população de 7.000 pessoas, quase o triplo da capacidade. E nesse período do ano também é muito procurado pelos turistas.

“A gente compreende, tem empatia pelas pessoas que ficam cinco horas em pé, no sol, mas as pessoas precisam entender que não somos nós os responsáveis pela falta de organização. Algumas coisas já eram previstas, como a chegada ômicron e o aumento do fluxo de turistas”, diz a enfermeira Andressa Albrecht.

Após as agressões que Albrecht e o segurança sofreram, a Secretaria Municipal da Saúde enviou mais profissionais de saúde para ajudar no atendimento e abriu mais consultórios no centro de saúde. “O atendimento ficou mais ágil e os usuários não estão mais tão agressivos”, conta a enfermeira.

Segundo Rudi Rocha, diretor do Ieps (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde), cabe à gestão cuidar diretamente da segurança e responder de maneira efetiva, jurídica e criminalmente, a ofensas e agressões, mas também falta treinamento aos profissionais da saúde e de outras áreas que dão suporte, como o pessoal da segurança e do almoxarifado, para lidar com essas situações de violência.

Para além da atual crise provocada pela ômicron, Gabriela Lotta lembra que há uma demanda reprimida enorme por outros cuidados, e os serviços de saúde terão que gerenciá-la. “Muitas pessoas ficaram dois anos longe das unidades de saúde, não fizeram os tratamentos e consultas preventivas, e agora estão com baixa tolerância para fazê-los e esperar o tempo e os trâmites dos serviços. E isso acaba sendo descontado nos profissionais.”

Ela sugere campanhas de conscientização tentando sensibilizar a população para a necessidade de maior tolerância dada a sobrecarga atual, além de suporte técnico e apoio psicológico aos profissionais.

“Eles estão na ativa há dois anos, sem descanso, sob muito estresse, e precisam conseguir lidar com isso e com as possíveis reações violentas dos usuários. A gestão precisa estar muito próxima do cotidiano desse profissional, precisa acompanhar as filas e salas de espera para tentar aliviar esses problemas.”

Ela diz que outra causa da violência tem sido o negacionismo de parte da população, especialmente em relação às vacinas. “Os antivacinas explicitam sua discordância aos profissionais de saúde de forma violenta. Está mais complicado em algumas áreas os agentes comunitários de saúde irem aos domicílios sozinhos para convencer a população a se vacinar. É melhor a gestão criar grupos maiores.”

Em nota, a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo diz que tem respondido ao aumento da demanda desde o início da pandemia, com a entrega de dez hospitais, ampliação do número de leitos de UTI de 507 para mais de 1.400, no auge da pandemia, além da ampliação de seus leitos de enfermaria.

Diz ainda que para atender a demanda dos munícipes que procuram as unidades de saúde, as UBSs estão atendendo pacientes com sintomas gripais sem a necessidade de agendamento prévio e 39 AMAs (Assistências Médicas Ambulatoriais) e UBSs Integradas tiveram o horário ampliado.

A secretaria ressalta que, mesmo com o empenho de todos os profissionais, a colaboração e compreensão dos usuários é primordial, principalmente, para seguir o fluxo no atendimento nos equipamentos.

Cláudia Collucci / Folha de São Paulo

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