Vacinação por comorbidade no Brasil ‘foi maluquice’, diz epidemiologista

Foto: Marcos Santos/USP/
O epidemiologista Paulo Lotufo, professor titular de Clínica Médica da Universidade de São Paulo (USP)

Os brasileiros que tiveram acesso à vacinação contra a Covid-19 são principalmente os mais velhos, mais ricos e mais brancos, diz o epidemiologista Paulo Lotufo, professor titular de Clínica Médica da Universidade de São Paulo (USP).

Esse retrato é resultado dos critérios para imunização utilizados até agora, afirma ele. Em entrevista à BBC News Brasil, Lotufo critica pontos como a lista de comorbidades (e as exigências para comprová-las) e diz que a forma como essa imunização ocorreu –”uma maluquice”– gerou “corrupção e fraude”.

“O grande erro de tudo sempre foi a história de que não houve coordenação federal”, critica.

O Ministério da Saúde determinou, inicialmente, grupos prioritários para a vacinação. O detalhamento das regras, no entanto, ficou sob responsabilidade dos governos estaduais e municipais. É por isso que as regras variam de cidade para cidade e vemos municípios próximos em fases diferentes da vacinação.

“Agora eu acho que os prefeitos perceberam que, se quiserem ser rápidos, têm que usar o critério de idade”, diz Lotufo.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

PERFIL DOS VACINADOS

Ao dizer que quem está vacinada hoje no Brasil “é a população mais velha, a população mais rica e a população mais branca”, Lotufo destaca que o problema é que isso “não bate” com as principais vítimas da doença.

O epidemiologista usa o exemplo da cidade de São Paulo e cita dados do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade), da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), para argumentar que “os locais de maior risco têm menos gente vacinada”.

Levantamento do LabCidade mostra que os territórios com maior incidência de Covid-19 são áreas de São Paulo onde mora a maior parte da população negra da cidade, porém os territórios onde mais se vacinou até agora são onde está a população branca de renda mais alta.

A crítica dos pesquisadores do LabCidade é que o poder público, mesmo reconhecendo as diferenças de impactos da pandemia nas regiões da cidade, não adotou “nenhuma política de prevenção territorializada para prevenir o contágio dos moradores desses bairros mais afetados”.

Nesse cenário, Lotufo menciona que as vacinas de uma só dose –atualmente a Janssen– deveriam ser aplicadas nessas regiões. “Eu pegaria as doses únicas, iria nos bairros mais pobres e vacinaria todo mundo lá.”

‘CORRUPÇÃO E FRAUDE’

Lotufo diz que foi “uma maluquice” a vacinação pelo critério de comorbidades da forma como ocorreu no Brasil.

O resultado, diz ele, é que os postos de vacinação viraram “cartórios”, gastando mais tempo com processo como a verificação de atestados (diante das informações de possíveis fraudes) do que com a aplicação da vacina em si.

“Ouvimos falar até em município que pediu firma autenticada do atestado. Umas coisas loucas, né?”

Embora aponte que o problema no Brasil não é a capacidade interna de vacinação, mas sim a chegada das vacinas, Lotufo diz que “os postos não deveriam ficar com praticamente nenhuma vacina –tinha que ir chegando e vacinando e vacinando e vacinando…”

Outro problema, segundo o epidemiologista, foi a venda ou a falsificação de atestados, que também colocaram na frente da fila quem não era uma prioridade de fato.

“A experiência mostrou: foi uma altíssima corrupção. Em Vitória, custava R$ 50 o atestado, em São Paulo, R$ 200. Teve venda de atestado adoidado. E não envolve só médico, não. Uma das coisas mais fáceis que tem é você imprimir um receituário, mandar fazer um carimbo… Foi não só corrupção, como fraude”.

Mas e quem realmente tem condições pré-existentes?

Lotufo defende que, considerando todos esses fatores, a prioridade deveria ter sido dada a um grupo mais restrito do que a lista de comorbidades usada no Brasil.

Ele defende como prioridades grupos como pacientes renais crônicos, transplantados, candidatos a transplantes, pessoas com doença autoimune e com câncer. E diz que o poder público já teria a listagem dessas pessoas. “São pessoas que estão registradas em algum momento no SUS, porque elas estão ligadas ao sistema de alta complexidade”.

No caso de diabetes e hipertensão, por exemplo, o professor da USP diz que elas têm relação com a idade e, por isso, “quanto mais rápido você for descendo, vai vacinando a maior parte dos que têm essas condições”.

“Essa questão da comorbidade, quem bolou isso daí é a pessoa que nunca trabalhou em um hospital, porque quando você trabalha em hospital, vê a pressão que existe para atestado para justificar ausência de trabalho. Depois, o que tem de gente que pede atestado para coisas como imposto de renda… A gente sabe como isso acontece.”

VACINA ‘NÃO É QUESTÃO CORPORATIVA’

Ao ser questionado sobre grupos profissionais priorizados –outro ponto da estratégia de vacinação que variou entre as cidades–, Lotufo diz que a vacinação “não é questão corporativa”.

“O pessoal de conselhos de classe, associações, sindicatos vive de voto dos seus afiliados. Então, o que apareceu aí de conselho de não sei o quê dizendo que conseguiu que a prefeitura de não sei da onde vacinasse… E esse cara utiliza, assim, uma coisa bem populista. Isso é corporativo.”

Esse é um dos efeitos do detalhamento das regras ter ficado nas mãos de governo locais, segundo ele.

“Essas pessoas estão próximas, estão ali. Veja só: a filha do prefeito tem uma profissão tal, aí o cara chega lá, fala (em defesa da vacinação do grupo), ele vai concordar, já vacina a filha. É normal isso daí, não estou fazendo um juízo de valor pecaminoso”.

O epidemiologista não citou um grupo específico que ele considere que não deveria ter entrado nas listas, mas criticou a priorização sem critérios coordenados.

“A coisa ficou absurda quando resolveram criar a categoria profissionais de saúde –eu nunca soube que tinha tanta profissão da saúde assim”, disse.

“O critério variou. Teve lugares que exigiram que a pessoa estivesse com a carteira em dia do conselho –ótimo para os conselhos. Outros levaram diploma, outros carteira de trabalho ou alguma coisa que estava trabalhando mesmo… Virou a maior bagunça.”

‘DISPUTA’ ENTRE GOVERNADORES

No fim das contas, a briga da população pelas vacinas é resultado, segundo o epidemiologista, da baixa oferta de doses no Brasil. A recusa do governo Jair Bolsonaro para ofertas da Pfizer ainda em 2020 é um dos pontos em investigação na CPI da Covid.

Sobre os anúncios, nas últimas semanas, de prefeitos e governadores de antecipação da vacinação contra a Covid-19, Lotufo diz que os motivos dessa antecipação seguem sendo “um mistério”.

“Acho que o que aconteceu foi assim: eles ficaram rateando com essa questão da comorbidade e ficou sobrando, porque muita gente consciente não apelou e uma grande maioria não conseguiu comprovar. Então, ficou sobrando. Essa é minha especulação.”

No entanto, ele provoca: “A questão não é quem vai chegar primeiro. A questão é quem vai completar as duas doses”.
Laís Alegretti/Folhapress

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