Advogados e escritórios no Brasil abraçam a cannabis, escreve Anita Krepp

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Atuação de profissionais do Direito em casos relacionados à cannabis dão suporte a aberturas na legislação

Se até há pouco tempo trabalhar com cannabis era tabu para os escritórios de advocacia, contar com experiência neste nicho hoje em dia se tornou um chamariz de clientes e novas oportunidades de negócios tão interessante quanto desbravar um setor incipiente com potencial para movimentar milhões de reais no Brasil nos próximos anos.

Antes de 2013, o contato dos profissionais do Direito com as questões canábicas limitava-se basicamente aos processos criminais relativos ao porte ou à venda da substância. Mas este cenário vem mudando desde que as famílias de Anny Fischer e Sofia Santos Brito, ambas portadoras da síndrome CDKL5 –uma alteração genética que causa epilepsia sobretudo durante a infância–, conseguiram autorização na Anvisa para a importação do óleo de CBD (canabidiol), dando início ao tratamento com a chamada cannabis medicinal.

Àquela altura, o advogado Diogo Busse comandava a secretaria de política de drogas de Curitiba (PR) quando foi apresentado à família de Anny por um amigo. Busse topou comprar a briga e, ao lado de outros advogados que integraram a causa, conquistou a primeira decisão judicial do Brasil autorizando o uso do canabidiol.

Nos dias seguintes à decisão, seu telefone não parou de tocar. Do outro lado da linha, famílias do país inteiro buscando informações sobre como repetir o feito para atender portadores de doenças raras que viam na cannabis uma salvação. “Por mais que a gente tenha avançado um pouco, é muito triste e inaceitável que ainda seja tão restrito, burocrático e caro cultivar uma planta da qual se extrai um óleo cujo os efeitos medicinais são inegáveis”, diz Busse, que desde então advoga exclusivamente em causas canábicas e de outras substâncias ilícitas.

As autorizações para importação de cannabis medicinal –segundo a Anvisa, já foram concedidas mais de 7 mil– foram o abre-alas de uma tendência que escritórios de Direito vêm integrando nos últimos anos e que, somadas às demandas pelo custeio de tratamentos à base de cannabis pelos planos de saúde e pelo SUS, e dos habeas corpus que garantem o autocultivo, formam parte do que se pode chamar ativismo judicial. Ao lado dos médicos prescritores, são estes profissionais que oferecem suporte aos pacientes na abertura –muitas vezes forçada– dos caminhos para uma legislação que ainda engatinha no Brasil.

DIREITO CANÁBICO?

Encabeçando esse movimento, 26 especialistas que integram a Rede Reforma são os responsáveis por algo além da metade dos mais de 200 habeas corpus emitidos no país até agora. Talvez o mais curioso deles, um feito inédito conquistado há poucos dias, aconteceu no bojo de uma ação de tráfico, em que a Reforma não apenas pôde trancar a ação legal como também conceder o direito ao autocultivo pelo acusado.

“Ninguém está interessado em criar um mercado de habeas corpus. Eu mesmo tenho vergonha de impetrar um. Onde está a decência de chegar ao Poder Judiciário para ganhar o direito de cultivar uma planta em casa? É uma vergonha morar num país que encarcera pessoas por fazer um tratamento médico”, afirma Cecilia Galicio, advogada do coletivo que se acercou ao tema após uma experiência pessoal com a cannabis medicinal, como acontece com a maioria dos profissionais que decidem atuar na área.

Emílio Figueiredo capitaneia a Rede Reforma e é a principal referência, uma espécie de embaixador do que poderíamos chamar de Direito canábico no Brasil –isso se ele próprio não fosse o primeiro a negar o termo, explicando que “direito em cannabis” ou “advocacia em casos de cannabis” são mais apropriados para definir o movimento que acontece por aqui. “Estamos muito no início da caminhada, não temos nada de concreto ou consolidado como um Direito”, pondera.

Tal posição nos coloca em um lugar significativamente contrária a dos EUA, que conta com um mercado anos-luz mais desenvolvido que o nosso, onde escritórios de Direito especializados em cannabis pipocam para dar conta de uma demanda que cresce a cada dia. Hoban Law Group é um dos grupos de advogados mais conhecidos por sua atuação, com escritórios espalhados em 20 estados norte-americanos e 32 países ao redor do mundo. De olho no potencial do mercado brasileiro, o renomado escritório firmou parceria com o Med Brazão, que presta assessoria aos clientes do grupo interessados em entrar no Brasil.

Desde o fim de 2019, quando firmaram o acordo, o advogado atendeu duas empresas norte-americanas da área de cosméticos e comestíveis que estudam a possibilidade de ingressar no Brasil por meio de medidas judiciais. A pressa, segundo ele, tem motivo. “Se as empresas forem esperar a aprovação do PL, vão perder tempo e espaço no mercado”, diz, fazendo referência ao Projeto de Lei 399/2015, que tramita no Congresso, propondo a regulamentação da cannabis medicinal no Brasil.

Rodrigo Mesquita é outro advogado que atende empresas estrangeiras interessadas em estabelecer negócios por aqui, prestando consultoria societária, regulatória, análise da prospectiva política, antecipação de cenários e riscos. Atuando também como consultor jurídico da Adwa, startup de desenvolvimento genético da cannabis que conquistou a primeira autorização de plantio para fins de pesquisa no Brasil, ele acredita que com a regulamentação do mercado haverá um boom no interesse do setor agrícola sobre essa “nova” commodity, o que demandará uma assessoria jurídica especializada. “Com o setor crescendo, precisaremos de mais advogados e não há muitos que tenham vivência e conhecimento a respeito dessa planta. Além das competências jurídicas será preciso dominar as competências específicas desse mercado”.

Historicamente, os advogados têm tido um papel central no avanço das questões da cannabis e, no futuro imediato, seguirão tendo uma presença fundamental ao promover segurança jurídica aos atores desse setor, como agentes econômicos, associações que garantem o acesso à cannabis aos seus membros, médicos prescritores e profissionais da saúde. Além disso, caberá também aos operadores da lei fornecer auxílio aos agentes reguladores no desenho dessa nova regulação. Ou seja, serão tempos de novas responsabilidades, mas, também, de ótimos desafios e grandes possibilidades para os causídicos que se dedicarem à matéria.

NECESSIDADE DE ESPECIALIZAR-SE

Se a história da advocacia em cannabis no Brasil ainda se concentra na judicialização dos direitos de pacientes e das associações como a Apepi, a Abrace e outras dezenas que lutam para garantir a popularização do acesso à cannabis medicinal aos seus mais de 100 mil associados, por outro lado, nota-se uma movimentação da atuação jurídica também no assessoramento de empresas que pretendem se adequar ao cenário proposto por resoluções como a RDC 327, que trata da autorização sanitária concedida pela Anvisa para a fabricação, importação e comercialização de produtos de cannabis.

Exageradamente meticulosa, a resolução exige procedimentos familiares às grandes farmacêuticas, que geralmente buscam assessoria de escritórios experientes na área da saúde, mas totalmente alheios a empresas menores, que não possuem a estrutura exigida. Essas acabam recorrendo a profissionais do Direito capazes de trabalhar sobre a RDC 335, que versa apenas sobre a importação desses produtos.

Por se tratar de um ecossistema muito específico, conhecer o nicho a fundo é uma das chaves para orientar uma empresa nascente nesse setor. Foi o que fez Rafael Arcuri, que trabalhava em um escritório de advocacia e, depois de conhecer o universo canábico, deu um gás nos estudos relativos ao tema antes de se lançar sobre o cânhamo para atuar como diretor executivo da Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC), instituto que reúne entusiastas da multifacetada matéria-prima. “O cânhamo é muito menos oligopolizado que a cannabis medicinal. Eu já estava buscando uma advocacia diferente para não ficar só sentado na cadeira e ele foi a maneira de fazer uma transição de carreira ainda estando na minha formação original”, conta.

DEPOIS DA REGULAÇÃO

A aprovação do Projeto de Lei 399/2015 obviamente impactará diretamente esse jogo, já que irá regular toda a cadeia produtiva não apenas para o uso medicinal, mas também para fins científicos e industriais.

Se o desafio até então era trazer os agentes do Direito para dentro dessa questão, agora parece ser momento de travar disputas por meio do Poder Judiciário, uma vez que o Legislativo não exerce o seu poder regulamentar de maneira devida e o Legislativo não tem sido suficientemente responsivo a essa demanda social. O fato é que Justiça ainda se mostra um caminho de extrema importância na luta por acesso à cannabis medicinal no Brasil.

Após o PL, os desafios serão outros: criação do próprio arcabouço normativo, com a escritura da própria lei, depois sofisticar esse texto, deixá-lo mais claro e os procedimentos que ele regula menos burocráticos sem que ele ameace as prerrogativas da lei para esse tipo de atividade. Depois disso, também no campo normativo, viria a criação dos regulamentos setoriais, sobretudo por parte da Anvisa e do Ministério da Agricultura.

Uma discussão para daqui uns 5 anos, mas que já te damos um spoiler, é a tributação de produtos de cannabis no Brasil. Como será feita? Em favor do quê ou de quem? Qual o modelo a ser seguido? Se for pelo dos Estados Unidos, há esperança de que se faça uma reparação histórica às comunidades afetadas ao longo de décadas de guerra às drogas, mas a bem da verdade, ainda nem lá isso de fato ocorre. Há Estados que pensaram na arrecadação de impostos repassados para educação, outros caminharam para a redução da criminalidade, outros para a saúde. E tudo isso, claro, sempre amparado legalmente pelos advogados, sujeitos imprescindíveis na reconquista dos direitos canábicos da sociedade.

Consultor jurídico na Machado Nunes, Pedro Lopes confirma que o debate ainda não está na mesa. “No Brasil tem um estudo falando sobre o potencial arrecadatório da cannabis equiparando com cigarro e cerveja. Mas a grande questão é que quando você compara um tributo de cerveja e cigarro, que são produtos nocivos à saúde, ao tributo da cannabis, que ok, faria sentido se fosse a cannabis de uso recreativo, mas e para uso medicina?”.

O Poder360 

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