Entenda por que armar a população pode recrudescer a violência e minar a democracia

Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Ao longo de pouco mais de dois anos de governo, Bolsonaro publicou mais de 30 decretos e normas para ampliar o acesso a armas de fogo no país. Também revogou medidas que poderiam melhorar sua fiscalização e, com isso, a investigação de crimes.

Parte dessas iniciativas, entretanto, foi barrada ou amenizada, tanto pelo Judiciário quanto pelo Legislativo.

Especialistas apontam que as medidas que ampliam a presença de armamentos no país alteram de maneira significativa o que ficou estabelecido pelo Estatuto do Desarmamento, aprovado em 2003 após realização de referendo popular.

Além disso, afirmam que o aumento de armas em circulação no mercado legal e medidas que afetam a fiscalização alimentam o mercado ilegal desses equipamentos.

Em recente entrevista à Folha, o ministro do STF Edson Fachin citou o incentivo às armas e, por consequência, à violência como um dos sete sintomas de um processo de corrupção da democracia no país.

A pauta armamentista é uma promessa de campanha de Bolsonaro, que tem o histórico marcado por falas de incentivo à violência.

Em 2020, mais de 180 mil novas armas foram registradas na Polícia Federal. Em 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro, os novos registros concedidos pela PF para posse de armas já haviam registrado aumento de 48%, passando de 47,6 mil em 2018 para 70,8 mil nos primeiros 11 meses de 2019. O número já era recorde ao menos desde 1997, dado mais antigo obtido pela reportagem.

Além disso, uma série de discursos do atual presidente e de seus filhos aponta que a família Bolsonaro minimizou, ao longo dos anos, a gravidade das ações de milícias —além de ter defendido e exaltado policiais suspeitos de atuação criminosa nesses grupos.

Ainda deputado, Bolsonaro chegou a proferir críticas à CPI das Milícias, realizada pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Ele defendeu que alguns policiais militares são confundidos com milicianos por organizar a segurança da própria comunidade, mas que não praticam extorsão.

“Como ele ganha R$ 850 por mês, que é quanto ganha um soldado da PM ou do bombeiro, e tem a sua própria arma, ele organiza a segurança na sua comunidade. Nada a ver com milícia ou exploração de ‘gatonet’, venda de gás ou transporte alternativo.”

Para especialistas, defender a atuação de milícias é uma negação do Estado moderno e da democracia.

De que modo o incentivo à ampliação do armamento pode minar a democracia? Em geral, costuma-se defender o armamento com base em duas razões principais, que são a garantia de defesa do cidadão contra criminosos e o respeito a um direito individual.

Já o presidente Bolsonaro também passou a relacionar o acesso a armas à democracia. Argumentando que, apenas com armas, a população poderia resistir a uma ditadura.

“Eu quero todo mundo armado. Que povo armado jamais será escravizado”, disse na reunião ministerial de abril de 2020. Pesquisa Datafolha feita no mês seguinte mostrou rejeição de 72% dos entrevistados a essa afirmação, enquanto 24% concordaram.

Propagar a resistência contra uma suposta ameaça de tirania do Estado é uma justificativa importada dos EUA, onde esse aspecto está na base da Segunda Emenda à Constituição, que dá às milícias o direito de ter e portar armas para garantir a segurança de um Estado livre.

Embora as circunstâncias tenham mudado muito desde 1791, quando o texto foi escrito, o conceito permanece e é repetido à exaustão por armamentistas americanos e brasileiros.

O pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP Bruno Paes Manso diz que há no discurso de Bolsonaro uma negação do Estado moderno, em que o monopólio do uso da força está nas mãos do governo, que a exerce por meio de suas forças policiais —conforme prevê a Constituição.

“Em vez de fortalecer as polícias e controlar os excessos, você entregar armas para o cidadão fazer o papel de polícia é desacreditar o papel do Estado moderno de buscar exercer o monopólio legítimo da força em defesa de um contrato coletivo [a Constituição].”

Para a presidente do Instituto Liberal do Nordeste, Catarina Rochamonte, colunista da Folha, o problema não são as armas para defesa pessoal. Mas, diz ela, ampliar a presença de armas num momento de grave crise sanitária e econômica acabaria por beneficiar grupos fanáticos.

“Me parece muito provável que as pessoas que vão se armar são aquelas que se aliam ao Bolsonaro e não aquelas que querem se proteger. Não é momento de armar a população. É momento de vacinar a população e resolver o problema da pandemia”, diz.

Autor do livro “A República das Milícias – Dos Esquadrões da Morte a Era Bolsonaro”, Paes Manso ressalta que a situação das milícias e da violência no Rio de Janeiro é emblemática no debate sobre o armamento.

“Você tem 700 comunidades lá, onde a República não chega, porque são grupos fortemente armados que exercem governanças locais. São uma espécie de subprefeituras armadas.”

Legitimar tais grupos é mais um fator de descrença no papel do Estado, diz o pesquisador, que também fala da aproximação dos Bolsonaro com milícias no Rio.

​“Há semelhanças ideológicas do Bolsonaro com os paramilitares e os milicianos, que acreditam que o Estado de Direito não presta, não serve, a Constituição e as leis não servem, elas ajudam os bandidos e atrapalham a polícia, os militares em guerra.”

Uma ligação suspeita era a do senador Flávio Bolsonaro, primogênito do presidente, com o ex-capitão da PM Adriano da Nóbrega, morto em 2020 e que era acusado de comandar a mais antiga milícia do Rio.

Citado nas investigações sobre o esquema das “rachadinhas”, Nóbrega foi condecorado por Flávio com a Medalha Tiradentes em 2005, enquanto estava preso preventivamente acusado de homicídio.

À época, Jair Bolsonaro chegou a dizer que foi ele mesmo quem determinou que Flávio condecorasse o ex-policial militar e o chamou de herói.

A polícia investiga se os acusados pelo Ministério Público pela morte da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, em março de 2018, têm ligação com uma quadrilha de matadores da qual Nóbrega é suspeito de fazer parte.

“A política de controle de armas no Brasil é regulada pelo Estatuto do Desarmamento, que é uma lei federal. E uma lei tem que tramitar no Congresso. Se você quer fazer mudanças estruturais na política de controle de armas, é preciso mudar a lei. O que Bolsonaro vem fazendo até agora é jogar o jogo infralegal”, aponta Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.

“Não é possível fazer decreto sobre qualquer coisa. Se fosse assim, a gente voltaria às ditaduras, aos processos ditatoriais que eram exercidos basicamente através dos decretos. Esse não foi o modelo que a gente quis construir enquanto sociedade, não foi o que a gente pactuou como forma republicana em 1988”, acrescenta Sheila de Carvalho, advogada internacional de direitos humanos e integrante da Uneafro e da Coalizão Negra por Direitos.

Para Carolina, essa estratégia gera um esgarçamento na relação entre os Poderes. “A agenda armamentista do presidente, além de ter um impacto real no número de armas e na violência no país, tem um impacto nas instituições democráticas”, diz.

​Quais as principais medidas de Bolsonaro para facilitar o acesso a armas no Brasil? Entre as medidas adotadas em decretos estão a ampliação das categorias que podem ter porte e posse de armas e o aumento do número de armas e munições que podem ser compradas.

Na última leva de flexibilizações, além de facilitar trâmites para a aquisição, os decretos aumentam de quatro para seis o limite de armas de fogo de uso permitido que um cidadão pode comprar.

Bolsonaro também agiu de modo a dificultar investigações criminais no país. Em março de 2020, ele determinou que três portarias do Exército que buscavam aprimorar o rastreamento e identificação de armas e munições fossem revogadas.

Em explicações apresentadas após pedidos de esclarecimento de orgãos de controle, o Exército apresentou ao menos quatro justificativas diferentes para a revogação. Tais argumentos, na visão de especialistas, reforçam a percepção de que a revogação foi uma atitude política —já a medida não foi justificada.

Conectado a isto, Carolina Ricardo destaca que o aumento legal de circulação de armas também estimula o ilegal, por meio de roubos e desvios desse armamento. Ela cita como exemplo o aumento da potência das armas permitidas. “Hoje é mais fácil ter um fuzil na casa de alguém, de um atirador, de um colecionador, e [assim] de esse fuzil ser desviado.”

Entre os grupos que tiveram acesso facilitado estão os CACs, grupo que inclui os colecionadores, atiradores e caçadores.

Segundo Paes Manso, como acaba sendo muito fácil conseguir se registrar como colecionador e caçador, Bolsonaro acaba também estigmatizando esse grupo como porta de entrada da arma que será desviada para o crime.

A advogada Sheila ressalta ainda que, quase três anos depois do assassinato de Marielle Franco, ainda restam perguntas a serem respondidas, entre elas quem mandou matar a então vereadora.

“E isso se conecta muito com esses novos decretos que Bolsonaro está impulsionando no âmbito da segurança pública. Por quê? São decretos que favorizam esses grupos paramilitares. Por qual razão uma pessoa teria seis armas em casa? Por qual razão alguém teria um número tão substancial de armamento se não fosse para ser utilizado para uma atividade escusa e potencialmente criminosa?”, diz.

É possível traçar algum paralelo entre o avanço dos homicídios em 2020 e o maior armamento nacional? Em 2020, o país registrou um aumento nos crimes violentos após dois anos consecutivos de queda.

“Nosso maior desafio é essa tentativa de controlar e reduzir os homicídios. E mais de 60% têm sido por arma de fogo. Quando você coloca gasolina nessa fogueira já em chamas altas é um problema obviamente fadado a crescer”, disse Paes Manso.

Carolina Ricardo afirma que as razões da queda ou do crescimento dos homicídios nunca são únicas. Ainda que não seja possível afirmar categoricamente qual o impacto do maior número de armas no aumento dos homicídios, ele acende uma luz amarela, diz.

“Todas as evidências mostram —as pesquisas que existem no mundo— que mais armas, mais crimes, mais mortes por arma de fogo. A gente está colhendo frutos desse aumento.”

Sheila destaca que o país não conseguiu estabelecer uma democracia sólida desde a Constituição de 1988, e a violência é um indicativo disso.

“Quando a gente faz uma análise desses dados de violência, a gente não vive um retrocesso, a gente vive uma contínua ascensão”, afirma. “Quando vamos pensar a redemocratização, a gente fez um acordo com a violência.”

O que está por trás da insistência do governo em aprovar o chamado excludente de ilicitude? A primeira tentativa de aprovação foi ainda em 2019, quanto o então ministro Sergio Moro apresentou sua proposta do pacote anticrime.

A proposta tem como objetivo livrar de punição agentes que matem em serviço por “medo, surpresa ou violenta emoção”. À época, o excludente de ilicitude foi barrado pelo Congresso.

Em fevereiro deste ano, a proposta do excludente de ilicitude para militares em operações de garantia da lei e da ordem integrou a lista de pautas prioritárias entregue aos presidentes da Câmara e do Senado.

Para o professor de direito da UFBA e advogado Samuel Vida, Bolsonaro utiliza a temática da segurança pública como mote para desenvolver uma campanha permanente para acirrar o populismo punitivista.

“A aprovação da excludente de ilicitude busca legalizar as práticas policiais criminosas, estabelecendo uma espécie de carta branca para matar os marginalizados, especialmente os jovens negros.”

Todos os dias, ao menos duas crianças e adolescentes são mortos pela polícia no Brasil, de acordo com levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

De 2017 a 2019, policiais mataram ao menos 2.215 crianças e adolescentes no país. O número de mortes vem crescendo. Em 2017, representavam 5% do total das mortes violentas nessa faixa etária; no ano passado, já eram 16%.

Além disso, segundo os números do Anuário 2020 do Fórum, oito em cada dez suspeitos mortos pelas forças de segurança são negros (79,1%).

O projeto de lei que busca regulamentar as polícias vai no sentido de reforçar a militarização da polícia. Qual pode ser o impacto dessa medida, caso aprovada? Está em debate um projeto de lei no Congresso que altera a lei orgânica da PM. Uma das mudanças pretendidas é a criação de um novo patamar hierárquico, de general, inspirada na estrutura das Forças Armadas.

As mudanças implicam redução do poder dos governadores, que escolhem os comandantes-gerais das corporações —estes passariam a ter mandato fixo.

Bruno Paes Manso reforça que um dos grandes desafios do Brasil é como exercer um controle político efetivo sobre as polícias, de modo a evitar o processo de formação de milícias e de quadrilhas paramilitares —que surgem e disputam espaço com outras quadrilhas. O projeto, no seu entendimento, acabaria por fragilizar ainda mais o controle sobre as polícias.

Já Vera Karam, que é professora de direito constitucional da UFPR e pesquisadora do CNPQ, o projeto vai na contramão do que seria desejável.

“Primeiro, deveríamos estar pensando na desmilitarização das polícias e não na militarização ou incremento, porque o Brasil é um dos poucos países que têm Polícia Militar. A polícia tem uma função constitucional de fazer a segurança pública que é absolutamente necessária e relevante, mas a polícia não tem que ser militarizada”, afirmou.

Atos normativos sobre armas e munições no governo Bolsonaro

14
Decretos presidenciais publicados

Situação
4 em vigor, mas três tiveram parte do texto alterado por novos decretos
4 entrarão em vigor em abril
6 revogados por novos decretos

15
Portarias publicadas pelo Exército, Polícia Federal, Ministério da Justiça e Segurança Pública e Ministério da Defesa

Situação
10 ​em vigor, mas 1 teve parte do texto alterado por novas portarias
4 revogadas por novas portarias
1 suspensa por decisão de primeira instância

1
Resolução publicada pela Câmara de Comércio Exterior, do Ministério da Economia

Situação
Suspensa por liminar

2
Projetos de Lei de autoria do Executivo

Situação

PL 3723/2019 – Aprovado pela Câmara em novembro de 2019, aguarda apreciação pelo Senado Federal
PL 6438/2019 – Está na Câmara e aguarda a designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado; Aguardando parecer do relator na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional
Pontos abordados nos atos normativos

Decretos

estendem as categorias que podem ter porte e posse de armas e aumentam o número de armas e munições compradas, inclusive para CAC (colecionador, atirador e caçador)
aumentam a validade do porte de arma de cinco para dez anos
regulam a fiscalização de produtos controlados pelo Exército
Portarias

ampliam o número de munições compradas por quem tem posse e porte de armas;
foram criadas portarias e revogadas sobre rastreamento, identificação e marcação de armas e munições;
autorizam e regulamentam uso de arma de fogo para policiais federais aposentados
abordam o rastreamento e marcação de armas da Força Nacional
definem as armas de uso restrito e permitido
Resolução
Zera imposto de importação de revólveres e pistolas

Projetos de Lei
Tratam de posse, porte e comercialização de arma de fogo por civis

Folhapress

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