Reuniões secretas entre autoridades dos EUA e Brasil ‘selaram’ encontro de Trump e Lula

Geraldo Alckmin
Os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Donald Trump mantiveram contatos secretos e realizaram reuniões de trabalho prévias ao primeiro encontro presencial entre os presidentes na Assembleia-Geral das Nações Unidas (ONU), na manhã de terça-feira, dia 23, em Nova York.

Essas interações, sigilosas até agora, envolveram autoridades de alto escalão dos governos brasileiro e americano. Os emissários agiram com aval dos presidentes Lula e Trump e mantiveram canais abertos para indicar a “boa disposição” de ambos a um possível encontro que se concretizaria nos bastidores da ONU.

O encontro, portanto, não foi “sem querer” como fizeram crer os dois governos, que agiram nos bastidores muito antes da Assembleia-Geral da ONU para pavimentar o caminho da conversa entre os dois. Até o último minuto pairou a incerteza se aconteceria, mas a interação estava o tempo todo no horizonte das autoridades.

A operação diplomática envolveu, sobretudo, quatro autoridades políticas. O vice-presidente Geraldo Alckmin, ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, conversou por videoconferência com o embaixador Jamieson Greer, representante comercial dos Estados Unidos (USTR), em 11 de setembro.

O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, recebeu no Brasil, em 15 de setembro, uma visita de Richard Grenell, enviado especial para missões especiais – coube a ele dialogar e selar acordos em Caracas com a ditadura venezuelana de Nicolás Maduro.

Não houve documentos divulgados, notas oficias, nem registros públicos em agendas das autoridades de nenhum de Brasil e EUA. Tampouco fotos. Os dois lados tomaram cautela e agiram com discrição para evitar que agentes contrários ao estreitamento de laços implodissem a operação. Procurados, Itamaraty não comentou, Ministério da Indústria não quis comentar, e Representante Comercial dos Estados Unidos e Casa Branca não responderam.

O Estadão agora reconstitui com exclusividade detalhes dessas reuniões, que se adensaram nos últimos quinze dias, com base em documentos e relatos de autoridades de governo com conhecimento e participação direta nas tratativas. Elas falaram sob condição de anonimato.

As conversas entre representantes dos dois países passaram a ser sabotadas por bolsonaristas liderados nos EUA pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho do ex-presidente, junto a representantes do movimento MAGA (Make America Great Again). Por isso autoridades públicas e privadas procuram operar nos bastidores.

A “química” entre Lula e Trump não “pintou” ao acaso, tampouco tão espontânea quanto as versões públicas de Trump e Lula parecem fazer crer, ao circularem a versão de “surpresa”.

Na manhã de terça-feira, horas antes da conversa entre Lula e Trump, o Estadão ouviu de um diplomata que eles dividiriam a mesma sala reservada a chefes de Estado e que os cerimoniais não haviam tomado qualquer medida para evitar o encontro. Pelo contrário.

Trump chegou mais cedo, assistiu ao discurso de Lula e deixou-se fotografar pela equipe da ONU com os olhos na TV, enquanto o petista reagia em defesa da soberania nacional.

Lula, por sua vez, manteve a rota que levava à sala para “buscar suas papeletas com anotações”, em vez de sair direto para o plenário do Debate Geral, o que era uma opção. Nenhum dos dois criou obstáculos para que não se cruzassem na sala.

Os contatos de bastidores ocorrem há meses entre os dois governos, mas se intensificaram após a condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro. Esse foi o indicativo de que a “maré estava virando”.

A reação de Trump nos jardins da Casa Branca deu a senha. Ele lamentou, comparou-se a Bolsonaro, mas não fez de imediato ataques ao Brasil, a Lula ou ao STF.

Não houve pedidos prévios de uma reunião bilateral formal, como os dois presidentes ficaram de marcar. Mas Lula, por sua vez, faria circular que, se trombasse com Trump no corredor da ONU, pretendia cumprimentá-lo. O petista repetiu a tese em entrevistas a TVs estrangeiras.

A chamada entre Brasília e Washington

Toda a coreografia estava ancorada em contatos reservados. Alckmin e Greer deram o primeiro passo. Enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) julgava o ex-presidente Jair Bolsonaro, eles agendaram uma chamada de vídeo por meio do sistema WebEx, para as 15h do dia 11 de setembro. Naquela tarde, o Supremo selou o destino de condenação do ex-presidente (27 anos e 3 meses de prisão) por tentar um golpe de Estado.

Seria a 12ª reunião de contato das equipes comerciais dos dois países, lideradas pelos seus chefes máximos. Alckmin estava acompanhado de assessores próximos, entre eles a secretária de Comércio Exterior, Tatiana Prazeres. Houve preparação de documentos internos do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic), que descrevem “elementos para negociações comerciais” e traçam estratégias para os contatos com os EUA.

Mas, segundo relato colhido pelo Estadão, eles trataram também de sondar as possíveis reações da Casa Branca à condenação – o maior temor do Brasil era uma nova leva de tarifas – e de dizer que em qualquer cenário precisariam manter os canais abertos para o futuro.

Um documento recomenda: “Gerenciar o timing da negociação – julgamento do ex-presidente deve agravar tensões e poderá levar a novas sanções sobretudo aos membros do STF. Ao mesmo tempo, processos sob Seção 301 e 232 seguem em curso, podendo levar a tarifas adicionais ao Brasil. Priorizar setores, se for o caso (para exclusões do tarifaço, para investigações sob 232 etc)“.

Procurados, o vice-presidente e o Mdic não quiseram comentar. O Itamaraty não se pronunciou.
Até então, havia um congelamento de contatos de alto nível, por causa de um impasse político e do tarifaço de 50%. A reunião foi mantida em sigilo, fora da agenda de Alckmin. Também não houve transparência ativa pelo USTR. O escritório não respondeu a perguntas enviadas pelo Estadão.

A escala do emissário de Trump no Rio

Na semana de 12 de setembro, no momento crucial do julgamento de Bolsonaro, o Itamaraty recebeu mensagens diretas ao ministro Mauro Vieira, indicando que Richard Grenell, enviado especial para missões especiais, viajaria ao Paraguai. Ele de fato foi recebido pelo presidente Santiago Peña, em Assunção, no dia 16 de setembro.

Grenell sondava se haveria disposição a um encontro, como havia indicado antes. O chanceler brasileiro confirmou e indicou que estaria no Rio de Janeiro, para a assinatura no dia seguinte do Acordo Comercial entre os blocos Mercosul e Efta.

Também de forma reservada, o enviado de Trump fez uma escala no Rio e, na manhã de 15 de setembro, uma segunda-feira, encontrou-se com Vieira em um hotel na zona sul carioca.

O conselheiro de Trump chegou acompanhado de dois americanos. Vieira, de dois embaixadores brasileiros. Neste encontro no Rio, o segundo em alto nível num intervalo de cinco dias, citaram que Lula e Trump estariam ao mesmo tempo em Nova York, na ONU, o que abriria uma janela para a primeira interação, como quase ocorreu no G-7. Mas nenhum dos lados garantiu que ocorreria.

Já Grenell reforçou uma mensagem de que deveriam “manter os canais de contato abertos” para isso. O teor é similar ao que Marco Rubio, o secretário de Estado dos EUA, indicou ao chanceler brasileiro em 30 de julho.

Naquela viagem, o ministro também procurou Rubio e sinalizou que estaria em NY para reuniões sobre a Palestina e que, “se houvesse disposição”, esticaria a passagem até Washington.

O encontro ocorreu fora do Departamento de Estado. Eles se reuniram em um escritório de advocacia a poucos metros da Casa Branca e do Capitólio. Não houve fotos, tampouco registro em agendas, embora tenha sido confirmada depois pelos dois países.

Nessas conversas, o ministro teria explicitado gestos que indicam não haver intenção na gestão Lula de rivalizar ou desafiar os EUA. O chanceler brasileiro teria reforçado que, dentro do Brics, o Itamaraty atuou para balancear e minimizar o viés anti-ocidental; Lula afastou-se de Maduro (e não reconheceu a eleição fraudada em 2024); o País não aderiu à Nova Rota da Seda, mesmo sob pressão da China. Por isso, Lula tem dito que Trump tomou decisões por estar mal informado.

Vieira também deu a versão do governo sobre a tentativa de golpe após as eleições de 2022 e sobre o julgamento de 2025.

Embaixadora e empresários agiram nos EUA

Além das duas conversas secretas que serviram para pavimentar a aproximação presidencial, houve nos últimos meses uma série de contatos em Washington DC. Desses diálogos, os americanos mandaram o recado de que faltava presença brasileira fazendo lobby no país.

Uma autoridade do governo que falou sob condição de anonimato e participou da costura disse que várias frentes foram colocadas em marcha. Empresários, parlamentares e associações do setor privado fizeram missões aos EUA e participaram de debates e apelaram junto ao USTR.

Mas houve ainda contatos reservados de Joesley Batista, da JBS, empresa que tem negócios bilionários no setor de proteínas em solo americano e foi doadora da cerimônia de posse do republicano. Ele conversou com Trump na Casa Branca. O setor privado agiu em linha e contato com Mdic, Itamaraty e Fazenda. Procurado, o empresário não se manifestou.

O momento mais crítico foi em 18 de julho, quando Moraes determinou a prisão domiciliar de Bolsonaro, com uso de tornozeleira eletrônica. A versão no governo americano era de que o ministro havia “desafiado” Trump. O governo brasileiro costurou junto a ministros do STF para que não “mordessem a isca” e não “reagissem” ao cancelamento de vistos.

Americanos fizeram chegar a “irritação” ao governo brasileiro. E os contatos ficaram congelados – “silêncio no rádio”, descreveu uma fonte. Trump confirmaria o tarifaço anunciado em 9 de julho, no fim daquele mês.

Desde o início da crise diplomática, Mauro Vieira autorizou um assessor de confiança a viajar quatro vezes à capital americana. Ele manteve reuniões com lobistas, setor privado, acadêmicos e meios de comunicação.

O embaixador Mauricio Lyrio, secretário de Clima e Meio Ambiente do Itamaraty, viajou com delegação em missão exploratória ainda em março. Lula o descreveu como “negociador de todas as causas difíceis”.

A embaixadora Maria Luiza Viotti, há cerca de 15 dias, jantou ao lado de embaixadores sul-americanos com Michael Jensen, um ex-oficial da Força Aérea, indicado por Trump diretor de Assuntos das Américas (Hemisfério Ocidental) no Conselho de Segurança Nacional.

Desde a campanha de 2024, ela havia se aproximado de Susie Wiles, chefe de gabinete de Trump. Na transição do governo Joe Biden para Trump estabeleceu um canal com Mike Waltz, que foi o conselheiro de Segurança Nacional e agora é o embaixador representante dos EUA na ONU. Também vinha mantendo diálogo com o vice-secretário de Estado, Christopher Landau.

Felipe Frazão/Estadão Conteúdo

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente esta matéria.