Proteger democracia é viagem sem volta, e última palavra sobre penas será do STF, diz Ayres Britto
O ministro aposentado do STF (Supremo Tribunal Federal) Carlos Ayres Britto entende que a lei que estabeleceu os crimes contra o Estado democrático de Direito não pode ser revogada tampouco atenuada.
Segundo ele, ao servir o princípio dos princípios da Constituição, que é a democracia, estabelecendo barreiras de proteção a ela, o legislador fez uma viagem sem volta. “A viagem da defesa da democracia não admite retrocesso, nem redução quanto à carga protetiva dela, a democracia.”
Com isso, ele argumenta que, caso o Congresso aprove uma lei alterando as penas ou a configuração desses crimes, caberá ao Supremo dar a última palavra, avaliando a constitucionalidade da norma e se ela atenuou ou desfez a carga de proteção à democracia.
Ayres Britto argumenta ainda que uma eventual anistia ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) seria inconstitucional. Para ele, há uma proibição lógica e implícita na Constituição a se anistiar crimes contra o Estado democrático de Direito. Além disso, a seu ver, uma segunda restrição decorreria do fato de que Bolsonaro era presidente da República. “Nenhum agente estatal pode ser anistiado por ação em nome do Estado, porque seria autoanistia, seria anistiar o próprio Estado.”
A entrevista com o ministro foi realizada na segunda-feira (15), por vídeo, e complementada na sexta-feira (19), por telefone, com perguntas sobre os desdobramentos ocorridos neste intervalo.
Como o sr. vê a defesa pela aprovação de uma anistia aos envolvidos nos ataques do 8 de Janeiro, aos réus da trama golpista e ao ex-presidente Jair Bolsonaro?
A Constituição fala de anistia que compete à União. Agora é preciso saber de que anistia está falando a Constituição. E o Supremo, que é quem aplica por último a Constituição, vai ter que decidir.
Me parece que a anistia não pode beneficiar quem atentou contra a democracia, contra o regime democrático, contra as instituições democráticas. Porque a democracia, na Constituição de 1988, é o princípio dos princípios. É o princípio continente de que todos os outros princípios são conteúdos.
Na avaliação do sr., portanto, não poderiam ser anistiados crimes contra o Estado democrático de Direito?
É uma impossibilidade lógica, é uma proibição lógica. Não precisou a Constituição dizer. Está implícito que alguns conteúdos do princípio supremo, do princípio continente da democracia, podem ser objeto de anistia, mas não a democracia mesma, como princípio continente.
Há pessoas que entendem que essa vedação precisaria estar explícita.
O princípio dos princípios sendo a democracia é inanistiável, porque a condição de possibilidade de punição de todos os outros crimes é a permanência da democracia. Se se abole a democracia, se se varre do mapa a democracia, o que resta do Estado de direito e do Estado democrático de Direito? Nada.
Há coisas lógicas do direito. A Constituição não precisa dizer. Há cláusulas pétreas que são implícitas e há cláusulas pétreas que são explícitas. Uma cláusula pétrea implícita é a impossibilidade de varrer do mapa o princípio dos princípios, que é a democracia.
O sr. também tem usado o termo de autoanistia. Poderia explicar esse conceito?
O indivíduo particular que atentar contra a democracia pode ser anistiado? Eu respondo, não. E um agente estatal, agindo enquanto agente do Estado, pode ser anistiado? [Também] Não. O Estado é o que são os seus agentes em ação. Os agentes do Estado falam em nome do Estado. Então, falando em nome do Estado, são o próprio Estado. A autoanistia, para excluir de responsabilidade ou de punibilidade um agente estatal, é também logicamente proibida pela Constituição, porque senão seria autoanistia.
O Estado pode baixar uma lei anistiando seus agentes, que atuaram em nome dele, Estado?
Não, logicamente não. É uma proibição implícita. Mas o Supremo é quem vai dar a última palavra.
Então o sr. considera que uma proposta de anistia que incluísse o ex-presidente Bolsonaro seria inconstitucional por esses dois motivos?
Seria, [assim] como [uma proposta] que beneficiasse qualquer outro agente estatal agindo enquanto agente estatal. Nenhum agente estatal pode ser anistiado por ação em nome do Estado, porque seria autoanistia, seria anistiar o próprio Estado.
Essa lógica, se aplicada à Lei da Anistia de 1979, ali não seria uma autoanistia?
Ali, primeiro, foi antes da Constituição atual, eu estou falando à luz da Constituição atual. Mas historicamente [a anistia de 1979 também] anistiou batalhadores, defensores da democracia, e não inimigos da democracia. Nós estávamos em vias de criar um Estado democrático de Direito.
Como o sr. vê a mais recente articulação no Congresso para alteração das penas dos crimes de abolição do Estado democrático de Direito e de golpe de Estado?
Seja qual for a modificação que o Congresso Nacional vier a introduzir, ou no Código Penal ou na Constituição, como se trata de figura de direito penal a serviço do princípio constitucional supremo da democracia, a matéria vai voltar para o Supremo. O Supremo é que dará a última palavra.
Quando uma lei é editada pelo Congresso para servir diretamente a um princípio constitucional, ela ganha uma singularidade: de permanecer como lei em sentido formal, porém, simultaneamente, como norma constitucional em sentido material substantivo. Daí submeter-se esse tipo de norma ao controle de constitucionalidade que é próprio do Supremo.
Quais limites o sr. vê para uma atenuação das penas?
O limite de não poder recuar na carga de proteção conferida à democracia. Por isso é uma viagem legislativa sem volta. Pela substância da lei, de proteger o princípio dos princípios da Constituição, que é a democracia, o legislador faz uma viagem sem volta.
Na análise do sr, a lei de defesa da democracia só pode ser editada para aumentar a proteção e não diminuir?
Isso. Ou preservar ou aumentar, não diminuir. A viagem da defesa da democracia não admite retrocesso, nem redução quanto à carga protetiva dela, a democracia.
Nessa perspectiva, uma atenuação dessa proteção poderia ser inconstitucional?
O Supremo quem vai dizer se a carga de proteção foi atenuada, se foi aliviada, se foi desfeita.
É propriedade do controle de constitucionalidade ver a compatibilidade entre a norma legal e a Constituição. Principalmente quando se trata de um princípio constitucional e mais ainda do princípio democrático. A principal função do Supremo é guardar formalmente a Constituição e substantivamente o princípio maior dessa Constituição, que é a democracia.
Qual o saldo na avaliação do sr. do julgamento que envolveu o ex-presidente Bolsonaro?
Eu não vi defeitos formais. E entendi que o Ministério Público conseguiu provar o que alegou no ponto de vista da materialidade das coisas, no sentido das imputações de tantos crimes cometidos, a partir de tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado democrático de Direito. Mas eu não estou aqui como julgador.
E do ponto de vista histórico?
É um marco. Vai deixar um legado positivo e reafirma para toda a coletividade que o direito é o ponto de afunilamento de tudo, sobretudo a Constituição.
Não há sociedade sem direito. O direito é a mais necessária das condições de existência de um corpo social. A Constituição é a norma das normas, a lei das leis. E o Supremo aplicou bem a Constituição a meu juízo.
O sr. tem alguma crítica à condução do processo?
A meu juízo, não. O processo foi formalmente bem conduzido, com observância das normas do processo, das garantias processuais das partes, do contraditório, da ampla defesa e com decisões fundamentadas tecnicamente, tomadas à luz do dia, com toda a transparência.
Acredita que teria sido melhor se o STF tivesse julgado no plenário?
Pessoalmente, sim. Eu tentaria afetar o julgamento para o pleno, mas nem por ter sido tomada a decisão pela Primeira Turma, a decisão mesma foi inválida. Não foi, porque está previsto no regimento.
Mas como envolveu um ex-presidente da República, militares de proa, figuras estatais reconhecidas, muitas exercendo vários cargos públicos sucessivamente, e pela repercussão geral, eu tentaria afetar a competência do pleno. Com o pleno são onze pares de olhos, não cinco pares. Onze experiências jurídicas, onze discussões, onze motivações. Sairia uma decisão mais convincente socialmente. Mas juridicamente, foi escorreito [sem falha].
O STF atuou de uma forma mais enfática e proativa nos últimos anos, sob a bandeira de salvaguardar a democracia. É preciso que a corte pise no freio? Seria importante encerrar o inquérito das fake news?
Não tenho opinião formada sobre isso. Agora, que venha uma decisão convincente, bem fundamentada, o mais rápido possível, sem prejuízo do devido processo legal e das garantias processuais da parte, é o ideal.
O Supremo não tem que ser ativista, mas tem que ser proativo, no sentido de cumprir com sua função no mínimo de tempo possível, sobretudo em casos conturbados como esse, que geram na coletividade um dissenso muito grande.
A pauta anti-STF virou a bandeira da direita bolsonarista, com defesa de impeachment de ministros. O atual governador de São Paulo disse recentemente que não confia na Justiça. Como o sr. vê esse cenário?
Numa decisão envolvendo tantos agentes estatais importantes é de certa forma natural que haja esse revolvimento, essa agitação, esse ‘frisson’ maior. Agora, cabe ao Supremo, como ao Poder Judiciário, sempre manter o equilíbrio das coisas, não se deixar tocar por esse tipo de provocação ou de animosidade.
O Judiciário está curtido em embates, não com fulano ou beltrano, mas embates sociais a partir das decisões dele. Mas ele não é parte, ele é julgador. Não deve se tornar parte, de jeito nenhum. Continue como julgador, ou seja, equidistante. Precisa manter a equidistância. E o Supremo saberá manter a equidistância.
Raio X | Carlos Ayres Britto, 82
Doutor em direito constitucional pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), foi ministro do Supremo de 2003 a 2012, tendo sido indicado por Lula. É advogado, parecerista e consultor jurídico, além de professor da Uniceub (Centro Universitário de Brasília). Também é presidente do Conselho Superior do Instituto Innovare, membro da Academia Sergipana de Letras e da Academia Brasileira de Letras Jurídicas
Renata Galf, Folhapress
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