Número de trabalhadores subocupados cresce e trava consumo no Brasil

oto: Rubens Cavallari/Folhapress/Arquivo
Vendedora ambulante de roupas há 26 anos no centro do Rio de Janeiro, Maria de Lourdes, 47, comemora que o avanço da vacinação contra a Covid-19 tem aumentado a circulação de pessoas, mas o movimento de clientes hoje ainda é 70% menor do que antes da pandemia. “Com as vendas mais fracas, parcelei tudo que dava. Coloquei meu filho em uma escola mais barata, cortei plano médico, cursos de inglês”, diz.

Ela faz parte do Muca (Movimento Unido dos Camelôs) e conta que a organização teve de reforçar ações para amparar os demais ambulantes —como doações de cestas básicas e montagem de cozinha comunitária— durante a pandemia. Maria, que esperava vender R$ 800 por dia em dezembro, agora luta para conseguir R$ 150. Mesmo com a volta do comércio de rua, ela tem trabalhado menos do que gostaria. “Chegar antes das 6h e ir embora já no começo da noite não compensa mais. As pessoas estão sem dinheiro para fazer compras”, afirma.​

Pelas estatísticas oficiais, brasileiros como Maria de Lourdes fazem parte de um contingente que já vinha em patamar alto no pré-pandemia e, com os efeitos da crise sanitária, bateu recordes. Trata-se do grupo de trabalhadores classificados como subocupados. Essa parcela inclui profissionais que trabalham menos de 40 horas semanais e gostariam de atuar por mais tempo, conforme a definição do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).No terceiro trimestre de 2021, o número de subocupados chegou a 7,771 milhões no país. O resultado significa alta de 9,4% frente a igual trimestre de 2019 (7,102 milhões), no pré-pandemia.

Em termos absolutos, isso quer dizer que, ao longo de dois anos, o grupo teve acréscimo de 669 mil pessoas. Segundo especialistas, o avanço representa uma espécie de trava para a recuperação do consumo, motor do crescimento econômico. É que, ao trabalhar menos do que gostaria, o subocupado tende a receber uma remuneração menor do que a desejada. Com menos renda no mês, manter o padrão de consumo vira uma tarefa mais difícil, principalmente em tempos de inflação alta, como é o caso atual.

“Para uma recuperação do mercado de trabalho, não basta apenas reduzir a taxa de desemprego. Os subocupados até estão trabalhando, mas gostariam de trabalhar mais e não conseguem”, afirma o economista Rafael Cagnin, do Iedi (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial). “A pessoa está fora da taxa de desemprego, mas se encontra em uma situação que não é confortável. Essa situação não permite a recomposição do padrão de consumo pré-crise”, completa.

De acordo com o IBGE, o contingente de 7,771 milhões de subocupados é o maior já registrado na série histórica da Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) com recorte de trimestres tradicionais —janeiro a março, abril a junho, julho a setembro e outubro a dezembro. A série teve início em 2012. Na versão da Pnad com trimestres móveis, o número já foi até maior, chegando a 7,822 milhões. Essa marca foi registrada no período de maio a julho de 2021.

“Temos quase 8 milhões de subocupados no país. Isso mostra que a recuperação do mercado de trabalho ainda tem fragilidades”, diz o economista Rodolpho Tobler, pesquisador do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas). “O aumento da subocupação gera uma espécie de bola de neve. Afeta o consumo e, consequentemente, a atividade econômica”, acrescenta.

EFEITOS DA PANDEMIA
Antes da pandemia, o número de subocupados já havia ganhado força no Brasil. A questão é que a chegada da Covid-19, no primeiro trimestre de 2020, agravou o quadro. Conforme Tobler, o corte de jornada e salários de trabalhadores formais durante a pandemia, permitido pelo governo federal, ajudou a levar o número de subocupados para cima a partir do ano passado. Mas, com o fim de medidas que visavam proteger a economia e os empregos, incluindo a redução de jornada, o grupo tem permanecido em patamar elevado devido aos sinais de fraqueza que ainda atingem o mercado de trabalho, avalia o pesquisador.

Segundo ele, os reflexos dessa situação podem ser medidos em parte pela queda na renda dos ocupados.
No terceiro trimestre de 2021, o rendimento médio da população com algum tipo de trabalho atingiu o menor valor para o período de julho a setembro na série histórica da Pnad. Na ocasião, o rendimento real habitual dos ocupados foi estimado em R$ 2.459. A escalada da inflação também é vista como responsável por diminuir o poder de compra. “Estamos vendo a população ocupada aumentar nos últimos trimestres, mas a renda média vem caindo. Tem o impacto da inflação e também existe uma parte das pessoas trabalhando e recebendo menos do que gostaria”, analisa Tobler.

Conforme o IBGE, a população ocupada com algum trabalho, que inclui os subocupados, foi de quase 93 milhões no terceiro trimestre deste ano. O contingente ainda está 1,9% abaixo do nível do terceiro trimestre de 2019 (94,7 milhões), período pré-coronavírus. Na visão de economistas, a recuperação consistente do mercado de trabalho depende principalmente do crescimento da atividade econômica como um todo. O problema é que o PIB (Produto Interno Bruto) já dá sinais de estagnação no Brasil.

No terceiro trimestre, o indicador encolheu 0,1%. Foi o segundo recuo consecutivo.

Para piorar, as projeções para 2022 vêm sendo cortadas devido ao cenário de incertezas fiscais, turbulência política, inflação e juros altos. Economistas entendem que o PIB deve ficar entre estagnação e recessão —queda da atividade— no próximo ano. O fraco desempenho da economia ameaça o mercado de trabalho. “Em vez de engrenar, a atividade patinou. O aumento dos subocupados, que deveria ser mera etapa do processo de retomada do mercado de trabalho, pode se estender por mais tempo”, aponta Cagnin.
Tobler tem opinião semelhante. Segundo ele, o contingente de subocupados deve continuar em patamar elevado em 2022.

“Vimos uma série de revisões para baixo no PIB. Assim, o cenário não é muito positivo para o mercado de trabalho. O nível de subocupação deve se manter em patamar elevado”, diz. Para o sociólogo do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos) Clemente Ganz Lúcio, a subocupação revela que a economia não tem sido eficiente em gerar postos de trabalho de qualidade. “O trabalhador tem tido de conviver com uma realidade de insegurança, tanto do ponto de vista do emprego quanto da renda familiar, ausência de perspectivas de melhora do emprego e desproteção.”

Ele complementa que a geração de postos com melhor qualidade depende essencialmente da capacidade da economia em produzir investimentos públicos e privados e de proporcionar distribuição de renda e crescimento de salários.

“É preciso estratégia para reverter a dinâmica dos últimos anos.”

Leonardo Vieceli e Douglas Gavras, Folhapress

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente esta matéria.