Cooperativa de garimpo recém-criada se alça a uma das maiores mineradoras na Amazônia

Foto: TV Brasil/Amazônia

Uma dupla de ex-servidores públicos da pequena cidade de Conquista d’Oeste (MT), sem nenhuma experiência em mineração, tenta abocanhar uma área na Amazônia quase tão grande quanto a detida pela Vale S.A. para explorar ouro, diamante e cobre.

Fundada há pouco mais de um ano por Aldeir Farias Simões e Ezequiel Alves, a Cooperativa dos Mineradores do Vale do Guaporé já é a quinta maior mineradora nacional em área requerida, disputando espaço com gigantes multinacionais como a Nexa Resources e a Anglo American.

Embora ostente números grandiosos, a cooperativa opera sob um regime de concessão de áreas desenhado para garimpeiros artesanais que trabalham em territórios reduzidos e com poucos recursos. Entre outras facilidades, as chamadas PLGs (permissões de lavra garimpeira) barateiam o processo burocrático para requerer áreas de mineração, pois estão sujeitas a menos exigências ambientais.

“É uma distorção absurda e os os riscos socioambientais são altíssimos, porque, na prática, é um empreendimento de grande porte que acaba se livrando de licenciamento e pesquisa prévia, camuflado de atividade artesanal”, critica o procurador da República Paulo de Tarso Moreira Oliveira, que atua no Pará.

Pela lei, as PLGs não podem ter mais do que 50 hectares —um cálculo que considera o trabalho de um grupo pequeno de pessoas usando ferramentas artesanais. Cooperativas podem pedir até mil hectares, porque somam esforços de pelo menos vinte trabalhadores. Se a lavra estiver na Amazônia Legal, esse limite salta para 10 mil hectares.

Mas a Vale do Guaporé soma 2,4 milhões de hectares requeridos —quase a metade disso está distribuída em PLGs coladas umas às outras formando, na prática, 25 blocos muito maiores do que 10 mil hectares.

“A lei permite ter vários requerimentos onde você quiser”, defende Ezequiel Alves, um dos fundadores do empreendimento.

Não é o que pensa o Ministério Público Federal. “É uma forma de burlar o limite. É muito absurdo conceder a uma única cooperativa áreas em vários lugares porque é impossível que os garimpeiros estejam trabalhando nesses vários lugares, sobretudo ao mesmo tempo”, contesta o procurador Oliveira.

A reportagem levantou os dados disponíveis no Sigmine, Sistema de Informação Geográfica da Mineração, da ANM (Agência Nacional de Mineração). Até 30 de setembro, período analisado pelo InfoAmazonia, nenhum requerimento da Vale do Guaporé havia recebido autorização.

A contagem do InfoAmazonia foi conservadora, já que considerou apenas as situações em que um requerimento encosta no seguinte. Mas há muitos outros pedidos da cooperativa com distância de poucos metros entre si.

O maior dos blocos da Vale do Guaporé está em uma área especialmente sensível: com 330 mil hectares, ocupa quase todo o espaço que separa a terra indígena (TI) Piripkura — onde os últimos sobreviventes da etnia resistem a invasores, conforme o InfoAmazonia e a Folha contaram em setembro —, dos territórios Zoró e Aripuanã. As três áreas têm registro de povos isolados, um risco adicional no cenário da exploração mineral.

A Vale do Guaporé também possui 45 requerimentos de lavra garimpeira na área do rio Juruena, a segunda região de Mato Grosso com maior registro de povos isolados. São três, mas nem todos têm os limites de seus territórios reconhecidos pela União.

“É alarmante. Se a gente olha o mapa da bacia do Juruena, os principais rios estão com requerimentos de lavra que apareceram do meio de 2020 para cá”, alerta o indigenista Ricardo Da Costa Carvalho, da Opan (Operação Amazônia Nativa). Quase todos são PLGs solicitadas pela Vale do Guaporé, líder em pedidos na região.

Nos casos das terras Zoró e Aripuanã, há ainda outro agravante. Os requerimentos da Vale do Guaporé aparecem dentro destas duas áreas protegidas. Situação semelhante acontece na TI Trincheira Bacajá, no Pará. Esse é mais um recorde da cooperativa: é a maior detentora de pedidos de garimpo sobrepostos a terras indígenas, com 24 requerimentos de PLG em 12 TIs diferentes.

A Constituição Federal veda garimpo em territórios indígenas, mas o presidente Jair Bolsonaro trabalha para mudar essa regra. No ano passado, enviou um projeto de lei ao Congresso Nacional que legaliza todos os garimpos irregulares do Brasil, mesmo os abertos em terras indígenas.

Ainda que o potencial de dano ambiental seja alto pelo tamanho das áreas requeridas, as lavras garimpeiras normalmente são licenciadas por secretarias municipais de meio ambiente —que além de menos estruturadas, estão mais suscetíveis às pressões locais.

No caso da Vale do Guaporé, sete dos 20 sócios são ou foram integrantes da administração de Conquista d’Oeste, cidade de 4.000 habitantes, ou de órgãos de assessoramento do poder executivo local.

A começar pelos dois fundadores do empreendimento: Ezequiel Alves foi chefe de gabinete dos prefeitos Walmir Guse (na época do PR) e Maria Lucia De Oliveira Porto (na época no PP) em dois períodos diferentes, entre 2013 e 2020, e chegou a ser secretário de Cultura do município. Aldeir Simões passou por vários cargos comissionados entre 2015 e 2020 e, em 2016, se candidatou a vice-prefeito, mas a Justiça Eleitoral indeferiu sua chapa.

O atual secretário da Fazenda de Conquista d’Oeste, Warlei Adriano dos Santos, é um dos que assinaram ficha de filiação na cooperativa —nenhum declarou “garimpeiro” como atividade profissional. Há oito trabalhadores autônomos, dois “do lar”, uma estudante, um bancário, três empresários, um supervisor de produção, uma aposentada, um agricultor e duas pessoas que declaram ser funcionárias públicas.

Boa parte dos cooperados são familiares da dupla Ezequiel e Aldeir, que convocaram filhos, irmãos, pais, mães e ex-esposa para completar o número mínimo de 20 sócios exigidos pela legislação brasileira para empreendimentos cooperativos. A reportagem não conseguiu contato com Warlei Adriano dos Santos.

Outro indício de que a Vale do Guaporé é uma empresa disfarçada de cooperativa é o fato de que seus dois dirigentes são também sócios em duas companhias mineradoras tradicionais, criadas pouco antes da cooperativa, mas deixadas de lado após a abertura do novo negócio.

“A gente teve essa experiência [de abrir a mineradora], mas o custo para manter uma área [de mineração] de empresa é muito alto, e a gente está começando agora. Daí optamos pela cooperativa que tem um custo mais baixo para a gente começar e se estabilizar”, admite Ezequiel Alves, referindo-se ao valor de R$ 1.012,73 em taxas exigidas de companhias do tipo limitada que requeiram áreas de mineração. No caso de PLGs, esse custo baixa para R$ 204,13.

Ainda assim, é possível calcular que foi preciso investir mais de R$ 97 mil para protocolar os 376 processos minerários que a cooperativa possui em tramitação na ANM. O valor está bem acima dos R$ 10 mil de capital social informados pela cooperativa.

Apesar disso, Alves diz que não tem apoio de nenhum político ou empresário. “Isso é tudo feito com salário, salário que a gente recebe, de funcionário. Meu amigo mexe com bezerro, tinha umas vacas e vendeu, eu tinha um terreninho e vendi.”

Para Gustavo Geiser, perito da Polícia Federal em Santarém, no Pará, a avalanche de requerimentos de garimpo protagonizada pela Vale do Guaporé pode ter como objetivo a reserva de mercado.

“A lei diz que quem chegou primeiro tem o direito, ponto. Então eles pedem a PLG para dominar a área. Depois eles podem vender a PLG para um terceiro”, explica.

A ANM foi procurada pela reportagem através de e-mail e telefonemas, mas não respondeu às tentativas de contato.

A reportagem foi produzida pelo InfoAmazonia com apoio da Opan (Operação Amazônia Nativa).
Pedro Papini, Fernanda Wenzel e Naira Hofmeister/Folhapress

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