Mais longevo da história do STF, Marco Aurélio sai com “sentimento de dever cumprido”

Magistrado se aposenta depois de 31 anos de serviços prestados à mais alta Corte do país
O ministro Marco Aurélio Mello se despede nesta 2ª feira (12.jul.2021) do cargo de ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) depois de 31 anos prestando serviços à mais alta Corte do país. A aposentadoria coincide com o seu aniversário de 75 anos, limite imposto pela Constituição Federal de 1988 à atuação de servidores públicos.

Ao Poder360, disse que deixa a toga com o “sentimento de dever cumprido”. O mais longevo integrante da história do Supremo –ficou 3 dias a mais que o segundo colocado, Celso de Mello– também conta que não tem planos, nem mesmo o de seguir para a advocacia, carreira comum a muitos magistrados aposentados.

“Não faço planos. As coisas ocorreram na minha vida com muita naturalidade, às vezes sem eu mesmo buscar. Me formei, fui advogado, integrante do Ministério Público, do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, cheguei em Brasília em 1981, para uma vaga no TST, depois entrei no Supremo. Agora me sinto um homem realizado. Encerro meus dias como juiz com o sentimento de dever cumprido. Posso ter errado, pois sou humano. Mas sempre me pronunciei segundo o meu convencimento. Nada mais”, diz.

Antes de migrar para o Direito, área em que fincou os pés, Marco Aurélio chegou a cursar engenharia, seguindo o desejo de seu pai. Desistiu dos planos em 1966. Em 1973 se formou em direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro. A partir daí foram 46 anos de magistratura, iniciada em 1975, quando se tornou juiz do trabalho em 2ª Instância.

Chegou ao STF em 1990, por indicação do então presidente Fernando Collor, seu primo. Tinha perfil progressista em uma Corte conservadora: recém remodelado pela Constituição de 1988, o Tribunal ainda contava com integrantes remanescentes da ditadura militar, encerrada em 1985. Ainda assim, lembra do período com nostalgia.

“O sistema de trabalho era outro. As turmas sempre foram ágeis e esgotavam a pauta. Mas no plenário, em que nunca acabam os processos, o relator levava o voto estruturado e os demais votavam no improviso, votavam no gogó. Agora, até quem não é relator às vezes tem um voto maior que o do relator. O que percebo é que se perdeu a espontaneidade”, afirma.

De 1990 a 2021, viu 6 presidentes da República assumirem o poder. Ele mesmo ocupou o cargo interinamente em 5 ocasiões. Em uma delas, em 2007, sancionou a lei que cria a TV Justiça. Não culpa a emissora pela perda de espontaneidade dos magistrados, nem por eventuais populismos no interior do Tribunal.

“Quem chega ao STF já chega com perfil na área jurídica formado. Quando podemos decidir atendendo os anseios da imprensa e da sociedade, nós decidimos. Mas quando não podemos, como nosso compromisso maior é com a supremacia da Constituição, nós nos mostramos contramajoritários e não nos preocupamos com a reação.

CONTRAMAJORITÁRIO
O ministro de fato exerceu o papel contramajoritário em diversas ocasiões. Em dezembro de 2018, deu uma decisão monocrática barrando a prisão em 2ª Instância. À época, todos os olhos se voltaram à sede da PF (Polícia Federal) em Curitiba, onde estava preso o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mais célebre alvo da chamada “execução antecipada da pena” (quando o réu é detido antes de esgotados todos os recursos). Dias Toffoli, então presidente do STF, acabou derrubando a liminar (decisão provisória).

Essa não foi a única decisão do ministro que desagradou parte da sociedade. Em 2000, soltou o banqueiro Salvatore Cacciola, preso por fraude contra o sistema financeiro. O ex-dono do Banco Marka fugiu para a Itália e ficou foragido por 7 anos. Em 2017, mandou soltar o goleiro Bruno Fernandes, acusado de mandar matar a modelo Eliza Samudio.

Mais recentemente, em outubro de 2020, soltou André do Rap, um dos nomes mais importantes do PCC (Primeiro Comando da Capital) em São Paulo. A decisão foi tomada com base em recente alteração introduzida no CPP (Código de Processo Penal) pelo Pacote Anticrime.

Questionado se já se arrependeu sobre decisões que desagradaram a sociedade e ganharam repercussão negativa na imprensa, o ministro é taxativo: não se arrependeu e não voltaria atrás.

“Eu vi as críticas, mas elas não me convenceram. O Congresso aprovou a reforma do CPP e limitou a custódia. Quando eu julgo, não vejo quem está envolvido. O que me importa é o que está no processo. Então eu cumpri meu dever. Se observar a lei é pecado, estamos muito mal. Lido com as críticas com muita naturalidade. A Corte escuta o ditame constitucional. Quando há coincidência da decisão refletir o que pensa a sociedade, nós temos palmas. Quando não há coincidência, temos críticas. E estamos acostumados às críticas.”
“SENHOR VOTO VENCIDO”

Em seus anos de Supremo, o ministro recebeu a alcunha de “senhor voto vencido”, em referência à quantidade de vezes em que teve seu ponto de vista derrotado na Corte. Levantamento feito em 2015 pelo Anuário da Justiça, ligado à revista eletrônica Consultor Jurídico, mostra isso: de 514 decisões colegiadas proferidas de 2006 a 2015, Marco Aurélio ficou vencido em 161. Isso equivale a 1 em cada 3 decisões.

O Anuário deste ano trouxe um levantamento de alguns dos julgamentos de 2021 e revela que o ministro continua sendo o que mais diverge do colegiado. Dos 30 julgamentos listados, ele foi voto vencido em 19 casos. Em 6 ele deu voto isolado (quando o julgamento fica 10 a 1, por exemplo).
Foto: Reprodução/STF/Ministro assumiu cadeira no STF em 13 de junho de 1990
Para o ministro, não é necessariamente verdade que ele é o mais famoso derrotado da Corte. “Isso é um tanto quanto místico e há certo exagero, porque ninguém vê em que ponto eu fiquei vencido: se foi em uma questão estritamente instrumental, mas formei maioria no mérito; se fiquei vencido na modulação. O importante é agir com espontaneidade, se curvando somente à própria ciência e consciência. É preciso perceber que o magistrado não ocupa cadeira voltada a relações públicas.”

Ele também destaca que em muitos casos seu posicionamento passou de vencido a vencedor no decorrer dos anos. O julgamento sobre prisão depois de condenação em 2ª Instância é um dos exemplos. Em todas as guinadas de entendimento que ocorreram na Corte –3 no total– ele sempre considerou inconstitucional a execução antecipada da pena. Desde setembro de 2019, essa é a jurisprudência fixada pelo Tribunal, em que o voto minoritário do ministro se tornou majoritário.

Ao Poder360, destacou outros casos em que foi de vencido a vencedor: o reconhecimento da fidelidade partidária; a inconstitucionalidade da cláusula de barreira; permissão de progressão do regime na Lei de Crimes Hediondos; e a limitação da prisão civil.

“Eu não mudei de voto. Sou flamenguista. Nunca mudei de camisa. Teve colegas que mudaram de voto, votaram dessa forma, depois variaram, depois retornaram à posição antiga. No caso da prisão após condenação em 2ª Instância, eu sempre disse: não se pode executar a pena antes da preclusão do título condenatório. Quem é que devolve a liberdade perdida pelo cidadão? Não se combate delinquência pelo atropelo. Isso não seria um avanço cultural, mas um retrocesso.”
SUCESSOR

Para Marco Aurélio, seu sucessor ideal deve atuar sem ideias pré-concebidas, examinar bem os elementos do processo e a lei, ser espontâneo e votar conforme a consciência. Diz que André Mendonça e Augusto Aras, os dois favoritos de Jair Bolsonaro, estão credenciados ao cargo. “Vejo os dois com bons olhos”, afirma.

As declarações de Bolsonaro afirmando querer indicar um ministro “terrivelmente evangélico” também não assustam Marco Aurélio. “Eu sou católico, de batismo. Temos colegas que professam o judaísmo. Isso é natural. Colegiado é um somatório de forças distintas. Se o presidente da República, nessa livre escolha, entender que cabe escolher um evangélico, teremos aí mais um segmento presente no Supremo. E isso é salutar. A diversificação é sempre salutar.”

Ele, no entanto, se diz preocupado com o Brasil e critica as declarações de Bolsonaro que colocam em dúvida, sem provas, a confiabilidade da urna eletrônica. Presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) em 3 ocasiões, o ministro chefiou as primeiras eleições informatizadas do Brasil, em 1996.

“O presidente foi eleito mediante esse sistema. Agora ele diz que se a disputa fosse fidedigna ele teria sido eleito no 1º turno. Isso é cabotinismo. É um elogio a si próprio. Desde 1996 eu não vi uma única impugnação eleitoral minimamente séria. Mas quando era cédula, houve várias impugnações procedentes.”

Por: Poder360

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