Entenda o que querem militares e se há risco de golpe sob Bolsonaro

Foto: Isac Nóbrega/Arquivo/PR

Em um movimento inédito desde a ditadura encerrada em 1985, o governo Jair Bolsonaro foi patrocinado ideologicamente e ocupado por militares da reserva e alguns da ativa, gerando identidade imediata para a população e para o poder civil, que não se dedica a entender os fardados.

Isso resultou em diversas crises, culminando na polêmica fala do ministro Walter Braga Netto (Defesa) sobre voto impresso nesta quinta (22).

A Folha traz um resumo deste enredo, que muitos temem poder acabar com uma crise institucional e talvez um movimento golpista por parte do presidente, o que parece ser improvável, apesar de fazer parte da retórica de Bolsonaro.

O PRINCÍPIO

Como os militares se aproximaram de Bolsonaro?
Capitão reformado do Exército, o então deputado sempre foi visto como um militar indisciplinado. No livro-depoimento do ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas fica claro, contudo, que a cúpula militar viu em sua ascensão nas pesquisas em 2018 uma chance de barrar o petismo de voltar ao poder e de redimir a imagem do golpe de 1964.

Havia clima para isso?
Como o episódio do tuíte de Villas Bôas pressionando o Supremo a não impedir a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva mostrou, os militares estavam empoderados no governo em crise de Michel Temer. Um dos ministros mais poderosos era um general, e a Defesa foi entregue a um fardado.

Daí o apoio a Bolsonaro, que cercou-se de generais da reserva e os aboletou em diversos ministérios. Não que tenham cabalado votos, mas quiseram ser fiadores.

Os generais achavam que iam governar sozinhos?
Pelo desprezo intelectual que nutrem por Bolsonaro, sim. Mas a prática se mostrou bastante diferente, com a divisão de poder em 2019 com os ditos ideológicos e outras alas do governo federal.

Como o mundo político reagiu a tudo isso?
Fingiu alheamento e buscou tratar os militares como um todo, com fraca interlocução. Historicamente, o poder civil dá pouca atenção aos militares, exceto em golpes. Temas de defesa hoje são tão importantes quanto qualquer outro, mas o Congresso segue ignorando essa realidade.

AS BENESSES E AS CRISES

O que os militares ganharam em troca de tal apoio?
O governo chegou a ter 10 de 23 ministros fardados (hoje são 7), com gente da ativa em alguns momentos, como os generais Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral) e Eduardo Pazuello (ex-Saúde). Em toda a Esplanada, são cerca de 6.000 militares emprestados para funções civis, situação na qual os salários são acumulados. Metade desse contingente, em cargos comissionados.

Além disso, o Ministério da Defesa conseguiu ver aprovada no Congresso sua reforma previdenciária, com critérios mais generosos do que para o funcionalismo em geral (defendidos pelos militares por sua condição única de trabalho), e também uma reforma administrativa que era reclamada havia duas décadas.

Programas prioritários foram salvos de cortes de gastos até a conta chegar neste ano. E em 2019 o investimento militar subiu a níveis recordes devido a manobra fiscal.

Então não houve atritos?
Houve. Ao longo de 2019, diversos generais foram sacados de seus postos por choques com a ala ligada à família presidencial, dita ideológica. O caso mais famoso foi o de Carlos Alberto dos Santos Cruz, general da reserva que agora é um crítico do governo.

E como a situação ficou?
Em 2020, sem apoio político e enfrentando a crise sanitária e econômica da pandemia de forma negacionista, Bolsonaro recorreu aos militares. Levou o general Walter Braga Netto para a Casa Civil e deu mais poderes aos fardados, culminando na colocação de Pazuello na Saúde —que resultou calamitosa, arranhando o mito da competência gerencial dos militares.

E os atos antidemocráticos? Os militares os aceitaram?
Em algumas ocasiões, Bolsonaro arrastava um ministro oriundo das Forças. Mas o ex-chefe da Defesa, general Fernando Azevedo, emitiu notas reafirmando o compromisso dos militares com a democracia —o que em si já era esquisito.

Por outro lado, o mesmo Azevedo em duas ocasiões emitiu notas elogiando o golpe de 1964, sob a ótica de que no contexto da Guerra Fria seria o correto a fazer contra o esquerdismo do governo de João Goulart.

Pior, houve o episódio do general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), um dos mentores do governo Bolsonaro desde 2018. Heleno divulgou um texto crítico da possibilidade de o presidente ter seu celular apreendido pela Justiça, e foi apoiado por Azevedo e os comandantes militares.

Depois disso, contudo, acelerou-se o processo de afastamento do serviço ativo, com o então comandante do Exército, Edson Pujol, riscando a linha no chão ao dizer que militares não deveria se meter com a política. Pazuello, contudo, nunca foi para a reserva.

E o que aconteceu na crise militar de março de 2021?
Bolsonaro nunca engoliu Pujol, que promovia o combate ao coronavírus de forma oposta à do presidente, tendo inclusive especulado sua troca por Ramos em 2020.

Com o recrudescimento da pandemia no começo deste ano e a queda na popularidade de Bolsonaro, o presidente radicalizou novamente seu discurso. E cobrou de Azevedo apoio às suas ideias, particularmente criticar governadores por restringir circulação de pessoas.

O caldo entornou, e Bolsonaro demitiu Azevedo. Num ato inédito, os três comandantes decidiram sair juntos. Braga Netto assumiu a Defesa e os demitiu antes disso, gerando a pior crise desde 1977 no setor.

Os novos comandantes são bolsonaristas, então?
O chefe da Aeronáutica, brigadeiro Carlos Baptista Jr., tem ideias bolsonaristas claras. O mesmo não se pode dizer da Marinha e do Exército, onde acabou ocorrendo nova crise envolvendo o já ex-ministro Pazuello.

General colocado em um cargo esotérico no Planalto, o ex-ministro participou de um ato em favor de Bolsonaro no Rio, em 23 de maio. Isso é proibido pelos regulamentos militares e passível de punição, de advertência verbal até cadeia por 30 dias.

Só que Bolsonaro pressionou o comandante do Exército, Paulo Sérgio Oliveira, a perdoar o general. Isso foi feito, dizem integrantes do Alto-Comando, para evitar uma crise mais prolongada, mas o episódio abriu a brecha para a anarquia: se o general não é punido, por que o sargento seria, afinal?

O PITBULL BRAGA NETTO

Qual o papel hoje do ministro da Defesa, Braga Netto?
Ele é visto como um bolsonarista de quatro costados, sempre disposto a defender as bandeiras levantadas pelo chefe, mesmo que isso incomode a tropa a ele subordinada.

Foi assim no episódio Pazuello, na nota em que ameaçou o senador Omar Aziz (PSD-AM) e a CPI da Covid devido às investigações sobre militares envolvidos em corrupção no Ministério da Saúde e na defesa feita por Braga Netto do voto impresso.

Então os militares rejeitam Bolsonaro hoje?
Não exatamente. Uma fatia expressiva do oficialato e, estima-se, dos praças ainda apoia o presidente. Entre os escalões superiores, a tese do voto impresso é majoritária, mas eles creem que não é o caso de o ministro falar sobre isso. O mesmo vale para a CPI.

Mas eles são bolsonaristas então, filosoficamente?
Aqui é um pouco a questão do ovo e da galinha. Militares defendem valores que acabaram sendo sequestrados e ignorados pelo bolsonarismo, como a defesa da família ante o que consideram uma ameaça à esquerda encarnada em pautas identitárias, o conservadorismo político no geral e o ideário de combate à corrupção.

Pior para eles, povo não distingue general ministro da reserva de alguém da ativa, embora a PEC que visa regular isso seja um começo de solução.

Para boa parte dos militares que não estão no governo, contudo, o ideal seria uma forma de saída honrosa da enrascada que foi patrocinada pelos chefes militares e generais influentes da reserva em 2018. Como isso pode acontecer é uma incógnita, contudo, enquanto Bolsonaro estiver no poder e usando a carta militar sempre que acuado.

VAI TER GOLPE?

Há clima para algum tipo de golpismo por Bolsonaro?
O presidente usa e abusa de retórica golpista como forma de manter o fantasma vivo, e se apresenta como um corpo único com os militares. A realidade é bem mais complexa.

Não há pilares para um golpe clássico, como alinhamento entre as três Forças e parte significativa da sociedade civil, seja para tirar Bolsonaro, seja para transformá-lo num ditador. Há uma compreensão clara de que isso não seria digerido pelas elites, pela população e no exterior.

E versões modernas, como a erosão das instituições?
Bolsonaro claramente sonha com isso, e um roteiro de ruptura foi desenhado por seu ídolo Donald Trump, que viu hordas de apoiadores invadirem o Congresso para tentar melar a validação da eleição de Joe Biden em 6 de janeiro.

Toda a defesa de que eleição sem voto impresso é fraude busca criar um arcabouço para, na visão dos mais pessimistas, forçar uma situação de conflito nas ruas caso Bolsonaro derreta de vez e seja derrotado nas urnas em 2022.

Isso levaria a impasses, como a decretação de uso de força federal ou mesmo estado de defesa em alguns locais. Há dúvidas se Bolsonaro iria atender a pedidos de ajuda de governadores opositores, por exemplo, o que levaria a crise para o Judiciário.

E os militares e as PMs?
Comandantes são unânimes em dizer, durante conversas reservadas, que não há espaço para golpismos, mas o fato é que não houve nenhum teste de realidade sobre isso para atestar tal comprometimento.

Já o episódio de ação pirata da PM no Recife contra manifestantes anti-Bolsonaro acendeu sinais amarelos sobre a propalada milicianização das forças estaduais.

É um tema que merece acompanhamento de perto, embora pareça altamente improvável que uma ruptura de fato possa vir a acontecer.
Igor Gielow/Folhapress

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