STF deu salvo-conduto a testemunhas e investigados em mais de 15 CPIs

Foto: Marcos Corrêa/PR

Ao longo dos últimos 25 anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) traçou precedentes que agora podem beneficiar o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, na CPI da Covid no Senado Federal. Um levantamento feito pelo Estadão aponta que, desde 1996, foram concedidos mais de 20 habeas corpus preventivos que garantiram a depoentes convocados por comissões parlamentares o direito de permanecer em silêncio, receber orientações de advogados durante os interrogatórios e até de não comparecer diante de deputados e senadores.

Depois de Pazuello pedir para adiar a oitiva alegando contato com um ex-assessor diagnosticado com o novo coronavírus, seu depoimento foi remarcado para o próximo dia 19. No entanto, nesta quinta-feira, 13, o ex-ministro acionou o STF em busca de um salvo-conduto para poder se esquivar caso seja pressionado a fazer juízos de valor ou dar opiniões pessoais sobre a gestão da pandemia e para garantir, preventivamente, que não poderá ser preso pelas declarações – a exemplo das ameaças ao ex-secretário de Comunicações, Fábio Wajngarten. A decisão do ministro Ricardo Lewandowski sobre o pedido deve sair ainda hoje.

Embora o general tenha deixado o alto escalão do governo há quase dois meses, o habeas corpus preventivo foi preparado pela Advocacia-Geral da União (AGU), responsável por defender judicialmente os interesses do Planalto. A pasta tem prestado assessoria ao ex-ministro da Saúde para traçar sua estratégia de defesa na CPI. No recurso, os técnicos mencionaram o inquérito aberto contra Pazuello pela crise do oxigênio em Manaus, o que reforça o argumento de que o ex-ministro deve ter o direito de não produzir provas contra si mesmo. Como Pazuello foi convocado na condição de testemunha, a omissão de informações poderia ser classificada como crime de falso testemunho.

“As testemunhas têm o dever de falar e de não omitir o que sabem, sob pena de falso testemunho. Já os investigados pode exercer o direito ao silêncio. Pazzuello teria que ou convencer o STF que ele, na prática, é investigado e pedir que lhe garantam o silêncio ou, ao menos, que ele pudesse fazê-lo quando as perguntas recaírem sobre o comportamento dele”, explica Davi Tangerino, professor de Direito Penal na FGV Direito São Paulo.

No Supremo Tribunal Federal, há diversos precedentes que garantem o direito ao silêncio tanto a investigados quanto a testemunhas convocados em comissões parlamentares. Os ministros já reconheceram, em diferentes ocasiões, que os depoentes têm direito de exercer a prerrogativa constitucional contra a autoincriminação, isto é, de não produzir provas contra si, sem que sejam enquadrados por crime.

“Seja na condição de investigado seja na de testemunha, o reclamante tem o direito de permanecer em silêncio, de comunicar-se com seu advogado e de não produzir prova contra si mesmo”, escreveu o ministro Ricardo Lewandowski em 2012, quando garantiu o direito ao silêncio a um cidadão alemão que se tornou alvo da CPI do Tráfico de Pessoas na Câmara.

O STF começou a estabelecer limites para a atuação das comissões parlamentares de inquérito ainda na década de 1990. A jurisprudência sobre as prerrogativas de investigados e testemunhas começaram a tomar forma desde, pelo menos, a CPI do Ecad. Na época, o então presidente da Associação Nacional dos Autores, Compositores e Intérpretes de Música (Anacim), Lacyr Vianna, foi preso em flagrante durante o depoimento na Câmara dos Deputados. A ordem, no entanto, foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal, que considerou que a omissão de informações que possam incriminar o depoente, mesmo quando ouvido na condição de testemunha, não poderia ser classificada como crime.

Em 1999, o ministro Celso de Mello deu um passo a mais na jurisprudência e garantiu a um depoente o direito de receber orientação do advogado na CPI do Narcotráfico, presidida na época pelo então deputado federal Margno Malta. “Não estamos interferindo na esfera de investigação da CPI. Não estamos dizendo que não pode fazer isto ou aquilo. Estamos explicitando o que diz a lei”, afirmou o então ministro à Folha de S. Paulo na ocasião.

Em 2000, uma nova tradição foi inaugurada a partir de uma liminar do ministro Sepúlveda Pertence, que autorizou o ex-presidente do Banco Central, Francisco Lopes, a ficar em silêncio no depoimento à CPI do Sistema Financeiro. “Não importa que, na CPI – que tem poderes de instrução, mas nenhum poder de processar nem de julgar – a rigor não haja acusados: a garantia contra a autoincriminação se estende a qualquer indagação por autoridade pública de cuja resposta possa advir à imputação ao declarante da prática de crime”, escreveu o ministro na ocasião.

Depois disso, depoentes foram beneficiados por salvos-condutos do Supremo Tribunal Federal em pelo menos 15 outras comissões parlamentares na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, incluindo as famosas CPIs do Banestado, do Apagão Aéreo, dos Grampos, da Petrobrás, dos Fundos de Pensão e do BNDES. Em alguns casos, quando já havia inquérito em curso contra a pessoa chamada para o interrogatório e sobre os mesmos indícios investigados na comissão, a Corte obrigou deputados e senadores a mudarem o status de testemunha para investigada e desobrigou a assinatura do termo legal de compromisso na oitiva.

“Embora o ofício de convocação indique que o ora paciente participará da reunião da CPI na condição de testemunha, a simples leitura das justificativas apresentadas nos requerimentos de convocação revela que o paciente em questão ostenta, inequivocamente, a posição de investigado. Essa particular situação afasta a possibilidade de obrigar-se o ora paciente, como pessoa sob investigação, a assinar o termo de compromisso, unicamente exigível a quem se qualifique como testemunha”, observou o ministro Celso de Mello na liminar que autorizou um ex-integrante do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) a se recusar a responder perguntas na CPI do Carf.

Em episódios mais recentes, o STF concedeu, inclusive, habeas corpus preventivos para desobrigar o comparecimento em comissões, como ocorreu com os irmãos Wesley e Joesley Bastista, convocados na condição de testemunhas pela CPI do BNDES, e com o ex-presidente da Vale, Fábio Schvartsman, chamado a prestar depoimento como investigado na CPI de Brumadinho. Com isso, o tribunal afastou a possibilidade de condução coercitiva para interrogatório nas comissões parlamentares.

“A pessoa que se acha submetida – ou que possa vir a sê-lo – a procedimentos de investigação penal ou de persecução criminal em juízo tem o direito de não comparecer ao ato de seu depoimento, ainda que regularmente para ele convocada”, escreveu o então decano Celso de Mello na liminar que beneficiou os irmãos Batista. “Se o paciente não é obrigado a falar, não faz qualquer sentido que seja obrigado a comparecer ao ato”, sintetizou Gilmar Mendes no julgamento da Segunda Turma que referendou sua decisão individual que autorizou o ex-presidente da Vale a se não apresentar na CPI de Brumadinho.

Na avaliação do advogado Marcelo Knopfelmacher, a jurisprudência do tribunal foi consolidada nas últimas quatro décadas. “O STF autoriza o direito às testemunhas em CPIs a se eximirem de assinar termo de compromisso e de ficarem em silêncio. A linha tênue entre testemunha e investigado em CPIs tem sido objeto de decisões do STF autorizando inclusive o não comparecimento, em prestígio ao direito à não autoincriminação”, explica.

Dos quatro ministros que comandaram o Ministério da Saúde durante a crise sanitária, Pazuello foi o que ficou mais tempo no cargo. Ele foi exonerado em meio a críticas pela demora na vacinação. Antes disso, participou das negociações para compra de imunizantes, inclusive das rejeições de ofertas de laboratórios, e presenciou as negativas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para aquisição da Coronavac, do Instituto Butantan. Também estava à frente da pasta durante a crise de falta de oxigênio em Manaus e quando foi lançado o aplicativo TrateCov. Seu depoimento é considerado crucial nas investigações sobre as responsabilidades do governo federal no enfrentamento da pandemia.

Rayssa Motta e Rafael Moraes Moura/Estadão Conteúdo

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