Governo da Bahia ignora decisão judicial e deixa criança com doença rara sem medicamento há 5 meses

Foto: Divulgação
Com apenas quatro anos de idade, Breno Betman Lima aguarda desde agosto de 2020 para iniciar o tratamento contra MPS (mucopolissacaridose) tipo IV-A —ou síndrome de Morquio—, uma doença genética rara caracterizada pela baixa estatura, alterações na coluna vertebral, no quadril, nos punhos, no tórax e nas costelas.

A enfermidade também provoca dores, dificuldades respiratórias, opacidade nos olhos e consequências mais graves, como tetraplegia.

Segundo a presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica, Têmis Maria Félix, a MPS é uma doença congênita, de difícil diagnóstico e muitas vezes os sinais não aparecem no nascimento.

Morador do bairro Santa Cruz, em Salvador, Breno descobriu a doença em 2019. De acordo com o relatório médico, na época, com 2 anos e 7 meses, a criança tinha estatura inferior para a idade, apresentava infecções respiratórias frequentes, associadas a deformidades ósseas e hérnia umbilical.

Breno passou em consulta na Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) da capital baiana, que coletou material para análise e enviou à Rede MPS Brasil, no Hospital das Clínicas de Porto Alegre (RS), onde são feitos exames para diagnóstico da doença de pacientes de todas as regiões do país.

Para evitar a evolução e agravamento dos sintomas da doença, Breno precisa receber doses de uma medicação de alto custo chamada Vimizim (Alfaelosulfase) 5mg/5ml e seguir com acompanhamento multidisciplinar. O custo anual por paciente é estimado em R$ 1 milhão.

Da BioMarin Brasil Farmacêutica Ltda, a medicação possui registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e é fornecida pelo SUS. O fármaco foi incorporado à Rename (Relação Nacional de Medicamentos) por meio da Portaria SCTIE/MS nº 82/2018, publicada em 20/12/2018.

A empregada doméstica Simone Silva Lima, mãe de Breno, procurou a justiça da Bahia para obter o fármaco pelo SUS. A MPS é progressiva e exige que o tratamento seja iniciado rapidamente.

Em 10 de agosto de 2020, o Juiz Federal Substituto da 1ª Vara/BA, André Jackson de Holanda Maurício Júnior, havia deferido o pedido de tutela de urgência e determinado que o Estado da Bahia, por intermédio da Secretaria de Saúde, providenciasse em 48 horas, com recursos próprios, o fornecimento do Vimizim, por tempo indeterminado.

“No presente caso, tratando-se de fornecimento de medicamento incorporado em ato normativo do SUS e tendo em vista que a incorporação de novas tecnologias ao SUS compete ao Ministério da Saúde, nos termos do art. 19-Q da Lei nº 8.080/1990, a responsabilidade financeira de custear o aludido fármaco recai sobre a União, ressalvado o direito de ressarcimento do ente federal na hipótese de haver pactuação em comissão tripartite, com distribuição diversa de competências, caso em que a compensação deverá se efetuar na esfera administrativa”, diz trecho da decisão.

Até esta sexta-feira (29), quase seis meses após a ordem judicial, Breno continuava sem tratamento.

Quando não tratada, a doença pode levar à morte devido às complicações cardiorrespiratórias.

Márcia de Oliveira é presidente da Associação Baiana dos Familiares e Amigos dos Portadores de Mucopolissacaridose e Doenças Raras, que existe há dez anos. A entidade assiste cerca de 500 pessoas com doenças raras na Bahia. Destas, 60 têm o diagnóstico de MPS.

A filha de Márcia, Andreza de Oliveira Sousa, 24, possui o tipo 1 da doença, faz uso de Aldurazyme e leva uma vida praticamente normal.

No Brasil, segundo Márcia, existe cerca de 900 crianças com MPS. Destas, cinco têm o tipo 7, que é o mais raro do mundo, e moram na Bahia.

Apesar dos entraves com a justiça, Márcia acredita que a chegada de novos medicamentos e novas tecnologias para doenças raras mostra um avanço no tratamento da doença.

O advogado da família de Breno, Hermano Gottschall, tem várias ações da mesma natureza. No entendimento da lei, a condenação é solidária. União e governo da Bahia têm a mesma responsabilidade na aquisição do fármaco.

“Compete à União, aos estados, aos municípios e ao Distrito Federal assegurar o direito à saúde e à vida”. Quando há o descumprimento da ordem judicial, a defesa apresenta variadas manifestações dentro do mesmo processo, evidenciando o risco de agravamento da doença, de morte, da necessidade clínica através de relatórios médicos e requer providências ao judiciário.”

“O juiz pode encurtar o prazo sob pena de multa diária, intimar o secretário de saúde, o diretor de farmácia da secretaria e o diretor da área técnica responsável no Ministério da Saúde para prestarem esclarecimentos sob pena e enquadramento no crime de desobediência civil. Há o risco de condução coercitiva do gestor público. O problema é que a lentidão do judiciário não colabora para a rapidez na solução destes casos”, diz Gottschall.

OUTRO LADO
A reportagem questionou o Ministério da Saúde e a Sesab (Secretaria Estadual de Saúde da Bahia) sobre o caso do Breno. O ministério não respondeu até o fechamento do texto.

Em nota, a Sesab explicou que alguns medicamentos para doenças raras foram incorporados em 2018/2019 pelo Ministério da Saúde, disponibilizados apenas neste ano pelo órgão e enviados recentemente à secretaria.

A Pasta afirma que Breno está com a documentação incompleta, informação questionada pelo advogado Hermano Gottschall.

“Não procede a alegação de ausência de documentação, visto que em momento algum foi levantado no processo. O juiz federal, ao deferir a liminar, teve o cuidado de verificar todos os documentos apresentados na ação judicial”, explica Gottschall.

A Sesab disse ainda que, a despeito da incorporação, procedeu à dispensa de licitação emergencial tão logo recepcionada a demanda.

“Ocorre que em razão de algumas dificuldades enfrentadas no processo de aquisição, notadamente por se tratar de medicamento importado, o medicamento ainda não foi entregue, por questões alheias à Sesab.

BRASIL TERÁ REGISTRO NACIONAL DE DOENÇAS RARAS
A presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica, Têmis Maria Félix, coordena um estudo — financiado pelo Ministério da Saúde e pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)— em 40 instituições brasileiras de todas as regiões do país para a produção de um inquérito de doença rara.

O Dia Nacional das Doenças Raras é 28 de fevereiro. No mundo, elas afetam mais de 300 milhões de pessoas, de acordo com levantamento realizado pelo Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica da França.

O termo é baseado na prevalência da doença. No Brasil, que adota a mesma categorização da OMS (Organização Mundial da Saúde), considera-se doença rara as enfermidades que afetam até 65 pessoas em cada cem mil indivíduos, ou seja, 1,3 pessoa em cada 2 mil indivíduos. E 80% são de origem genética — menos de 10% destas tem alguma medicação específica.

Estima-se que existam em torno de seis mil doenças raras diferentes. Cerca de 6% da população brasileira sofre de alguma delas, segundo Félix.

Patrícia Pasquini/Folhapress

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