De ‘pedagogia cívica’ a ‘reforço de patrimonialismo’, veja críticas e defesas do voto obrigatório no Brasil

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil/
                                                                         

O debate sobre o voto obrigatório no Brasil divide especialistas entre os que defendem a manutenção do sistema e os que criticam a obrigatoriedade —e advogam, portanto, pela adoção do voto facultativo para todos os cidadãos.

Apesar de uma primeira distinção de ideias ser a oposição entre “voto como dever” e “voto como direito”, há uma série de argumentos mobilizados por cientistas políticos para mostrar os problemas e as vantagens de cada uma das opções.

Entre um dos principais argumentos dos que defendem o voto compulsório está o de que a obrigatoriedade estimula o estabelecimento de práticas democráticas na sociedade brasileira.

“Somos uma população muito ciosa do que é meu, seu, do outro, mas o que é público não foi aprendido ainda”, diz Mayra Goulart, cientista política da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Então fica parecendo que o que é público não é de ninguém. A ideia de público precisa ser ensinada, e o ensinamento se dá a partir de praticas cidadãs.”

Goulart lembra que após a ditadura militar (1964-1985) o Brasil “tinha uma população que não tinha a democracia nos seus rituais, no seu imaginário político, no seu léxico, nas suas expectativas políticas, nos seus valores”.

“O voto obrigatório, nesse ponto, é estruturado a partir desse projeto: de fazer entremear no tecido social práticas e rituais democráticos.”

Desde a Constituição de 1988, o voto é obrigatório para os brasileiros maiores de 18 anos e facultativo para os que têm entre 16 e 18 anos, mais de 70 anos ou são analfabetos.​

Eduardo Grin, cientista político da FGV, lembra que há uma relação entre países que passaram por períodos de exceção e o voto obrigatório como uma espécie de resposta aos períodos de supressão política.

“A gente já tem no Brasil uma democracia que, a duras penas, vem conseguindo se manter. Sobretudo nesse período mais longo pós-ditadura militar, é o período mais longo da nossa democracia”, afirma.

“Com esse grau de novidade, comparado com países que tenham talvez quase dois séculos [de democracia], acho que a gente ainda precisa consolidar muito nossa democracia, e não há democracia sem participação da sociedade escolhendo.”

Entre os problemas dos países com voto facultativo, Grin aponta que há um risco de que a legitimidade do candidato vencedor seja questionada, já que ele pode não ter sido eleito pela maioria da população.

O cientista político também avalia como “desigual” comparar o Brasil com países como Alemanha e Estados Unidos —onde o voto é facultativo—, já que, na sua visão, temos mais desigualdade social, um sistema político que é mais “capturado pelo poder econcômico” e uma democracia mais recente.

Para ele, é preciso desenvolver na sociedade brasileira uma preocupação com a coisa pública, e “não transformar o voto facultativo em mais um fator que amplia a desigualdade, mais um fator que exclua a escolha política”.

Discorda Paulo Niccoli Ramirez, cientista político e professor da ESPM, que defende o voto facultativo e afirma que o que leva às pessoas às urnas não é propriamente a obrigatoriedade.

“O que de fato estimula [a população a votar] é a qualidade da representatividade, ou seja, se as pessoas se enxergam na política, enxergam a existência de representantes, partidos que de fato alavanquem seus interesses”, diz.

Para o especialista, o voto compulsório reforça o coronelismo e o patrimonialismo no Brasil, especialmente em municípios que são afastados dos grandes centros urbanos.

“A gente tem um país gigante, em que a maioria dos candidatos que consegue ser eleito de fato tem um poder aquisitivo maior. Então, a medida que você exige que um indivíduo vote, ainda mais em lugares mais carentes, eles tendem a trocar o próprio voto por qualquer tipo de benefício que esse candidato ofereça”, diz Ramirez.

“Se os eleitores tiverem que ir votar apenas por livre opção e desejo, muito provavelmente, e sobretudo no Legislativo, os cargos seriam ocupados por figuras que tenderiam a representar mais os diferentes interesses da sociedade.”

Para ele, as taxas de abstenção, votos em branco e nulos também indicam não só um desgaste do voto obrigatório, mas uma “sensação de não representatividade”.

O país registrou 23,14% de abstenções no primeiro turno das eleições municipais em 15 de novembro, o maior índice para pleitos municipais dos últimos 20 anos.

Nas eleições anteriores, ocorreram sucessivos aumentos nas taxas de pessoas aptas a votar que não compareceram às urnas. No pleito municipal de 2016, a abstenção foi de 17,6% no primeiro turno e no anterior, em 2012, a taxa foi de 16,9%.

Mayra Goulart também vê esses números com preocupação, e acredita que há um certo desentendimento da população sobre o que está sendo questionado na hora de ir às urnas votar.

“O que está sendo perguntado não é se você gosta ou se você não concorda [com um candidato], mas qual daquelas opções é melhor para o público. Não para você, para o público”, reforça a cientista política.

Ricardo Caldas, professor do instituto de ciência política da Universidade de Brasília, que hoje defende o voto facultativo, aponta que um argumento favorável à manutenção da obrigatoriedade é que ele faz com que candidatos percorram o país em campanha para as eleições.

“Se você acaba com o voto obrigatório, o primeiro reflexo é que o candidato não vai mais fazer campanha no país inteiro, porque é desinteressante ir para o Acre, para Rondônia, onde há pequenos eleitorados”, explica o professor, que lembra que essa é uma maneira importante de conhecer os problemas das várias regiões do Brasil.

“Não justifica o custo de viagem e da mobilização, ainda mais agora numa era de internet e de videoconferência.”

Ele defende, no entanto, que quem não quer votar hoje no país já não vota. “A pessoa alega que está em trânsito, que está com problema de saúde, qualquer coisa. A penalidade é muito baixa.”

Para ele, o valor não é distante das taxas de abstenção vistas em outros países que não têm voto compulsório.

O argumento central para ter voto facultativo no país, segundo o professor da UnB, é o voto ser um direito, mais do que um dever. “No Brasil a gente sempre dá ênfase nos dois [direito e dever]. O lema dos que defendem é que eu não posso ser obrigado a votar se eu não quiser”, diz Caldas.

É justamente o argumento oposto dos que defendem a obrigatoriedade, explica Álvaro Azevedo Gonzaga, professor do curso de direito da PUC-SP. Para ele, o voto é um dever associado à um direito, já que a Constituição define que “todo o poder emana no povo”.

“A pessoa que não vota, ela quando vai e fala não vou votar, ela nega o sistema eleitoral”, afirma. “A pessoa que vota nulo, ela se manifesta dentro do sistema eleitoral, dentro da emanação de poder do povo, a não escolha por nenhum candidato. O voto nulo, então, é diferente de não ir votar.”

Mayra Goulart defende ainda que a “obrigatoriedade é vista como um incentivo, não como algo que deve ser recoberto de punições”. “Ela é um incentivo do cidadão para participar de um processo eleitoral.”

Já o cientista político Ramirez afirma que o desenvolvimento das novas tecnologias e a possibilidade de participação de decisões por meio de recursos tecnológicos, como a adoção de voto por celular, podem estimular mais o debate público e, consequentemente, a população a votar do que a obrigatoriedade, por exemplo.

VEJA ARGUMENTOS FAVORÁVEIS E CONTRÁRIOS AO VOTO OBRIGATÓRIO
“[O Brasil] tinha uma população que não tinha a democracia nos seus rituais, no seu imaginário político, no seu léxico, nas suas expectativas políticas, nos seus valores. O voto obrigatório, nesse ponto, é estruturado a partir desse projeto: de fazer entremear no tecido social práticas e rituais democráticos”, diz Mayra Goulart, cientista política da Universidade Federal do Rio de Janeiro

“Se os eleitores tiverem que ir votar apenas por livre opção e desejo, muito provavelmente, e sobretudo no Legislativo, os cargos seriam ocupados por figuras que tenderiam a representar mais os diferentes interesses da sociedade”, diz Paulo Niccoli Ramirez, cientista político e professor da ESPM

“Com esse grau de novidade [da nossa democracia], comparado com países que tenham talvez quase dois séculos, acho que a gente ainda precisa consolidar muito nossa democracia, e não há democracia sem participação da sociedade escolhendo”, Eduardo Grin, cientista político da FGV

“Quem não quer votar [hoje no Brasil], realmente não vota. A pessoa alega que está em trânsito, que está com problema de saúde, qualquer coisa. A penalidade é muito baixa”, diz Ricardo Caldas, cientista político da Universidade de Brasília

Folha de S.Paulo

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