De plantas a comidas finas, compras supérfluas geram críticas a órgãos públicos na pandemia

Foto: José Cruz/ Agência Brasil
Plantas, frutos do mar, louças especiais, cortinas motorizadas, medalhas. Órgãos públicos país afora iniciaram processos para comprar esses itens nos últimos meses e atraíram críticas por cogitar gastos considerados supérfluos no meio da pandemia do coronavírus.
Licitações do tipo até passariam despercebidas em tempos normais, mas ganharam nova dimensão em meio à crise na saúde e na economia. Um levantamento da Folha mostra que a situação se repete no Executivo, no Legislativo e no Judiciário, nos âmbitos municipal, estadual e federal.
Contratações de serviços como ornamentação de ambientes, produção de eventos e copeiragem também têm entrado na mira de cidadãos e de políticos de oposição, que apontam desperdício de verbas.
Alguns dos processos já estavam com a tramitação em andamento ou se referiam a despesas renovadas periodicamente, mas só se tornaram públicos quando a pandemia estava declarada. Parte das negociações foi suspensa após receber questionamentos.
Um dos primeiros casos a gerar polêmica foi o de dois termos assinados em abril pela gestão Ronaldo Caiado (DEM-GO) que previam o gasto de R$ 611 mil para o fornecimento, por 12 meses, de carnes diversas, frutos do mar e queijos para a cozinha do Palácio das Esmeraldas, sede do governo de Goiás.
Diante das contestações, Caiado anunciou o cancelamento da execução dos contratos por 120 dias.
Comidas também deram o que falar no CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que planejou destinar até R$ 217 mil de seu orçamento para uma empresa que forneceria os alimentos nos voos do presidente do órgão, Dias Toffoli, em aeronaves da FAB (Força Aérea Brasileira), por um ano.
O menu incluía refeições, além de castanhas, patês de vários sabores, como gorgonzola e tomate seco, geleias, sucos e refrigerantes. A repercussão negativa levou o CNJ a suspender temporariamente a licitação.
O STF (Supremo Tribunal Federal), outro órgão presidido por Toffoli, figura na lista das compras controversas, com um pregão para instalar em sua sede cortinas motorizadas do tipo rolô. Gasto previsto: R$ 1,7 milhão. O investimento faz parte das obras de restauração da fachada, divulgadas em 2019.
Uma petição no site Change.org, reivindicando a anulação da medida, já alcançou 43 mil assinaturas.
Cortinas e persianas também são o objeto de um contrato da Presidência da República que destinará R$ 312 mil a uma empresa para cuidar dos adereços nas janelas dos palácios do Planalto, da Alvorada e do Jaburu, além da Granja do Torto e de outros edifícios públicos em Brasília.
A firma terá que instalar e fazer a manutenção sob demanda, ou seja, sempre que for acionada. Segundo o governo, as cortinas ajudam a controlar a incidência dos raios solares e a proteger móveis. A Presidência ressaltou que o processo foi aberto em janeiro, mas sua conclusão, em maio, coincidiu com a pandemia.
Ainda na Praça dos Três Poderes, o Senado publicou edital para comprar milhares de xícaras, pratos, talheres, copos, bandejas e outros materiais de copa e cozinha. Segundo a Casa, os itens vão suprir as necessidades “para o período aproximado de 12 meses”.
Exigências foram colocadas: pratos para refeição e xícaras para chá, por exemplo, deverão ser “confeccionados em porcelana fina” e conter o logotipo do Senado “dourado em alto brilho”.
No dia 6 de maio, a licitação foi encerrada registrando um valor de R$ 181 mil, 49% menor do que o preço que a Casa se dispôs a pagar inicialmente (R$ 354 mil). O órgão, no entanto, decidiu não homologar o resultado enquanto durar a crise, o que significa que o dinheiro não sairá do caixa.
Em nota, o Senado afirmou que “mantém o compromisso com a contenção de despesas” e que, durante a calamidade pública, vai adquirir apenas itens essenciais para seu funcionamento.
No Rio de Janeiro, o Exército recebeu críticas por separar R$ 8,8 milhões do orçamento para contratar, por 12 meses, um serviço de bufê para o Forte de Copacabana. A firma abasteceria as cerimônias realizadas no local. Às vésperas do pregão, em abril, o processo acabou sendo revogado.
A lista de mais de 500 itens exigia iguarias como ceviche de peixe branco, quiche de queijo com alho-poró, guioza de pera com gorgonzola, miniacarajé e camarão com guacamole. O Exército informou à Folha que o forte “julgou pertinente” adiar a concorrência e que não há previsão de retomada.
Também no Rio, o governo estadual manteve durante a crise do coronavírus a previsão de desembolsar até R$ 21,5 mil em plantas ornamentais e insumos de jardim para finalizar a restauração de um chafariz no Palácio das Laranjeiras, residência oficial do governador Wilson Witzel (PSC).
Serão comprados exemplares das espécies iresine (uma folhagem vermelha com flores brancas) e grama amendoim, além de brita e areia. A gestão Witzel diz que o processo foi iniciado em janeiro e que o estado é obrigada a proteger bens de valor histórico, artístico e cultural, como é o caso do chafariz e seu entorno.
Em Pernambuco, foi a Assembleia Legislativa que se tornou alvo de ataques por querer embelezar salas de sua sede. Um advogado chegou a levar o caso à Justiça, repudiando o que chamou de “uma inaceitável insensibilidade com o sofrimento da população”.
Com as reações, o gasto de R$ 194 mil para fazer “ornamentação e ambientação de interiores” acabou sendo adiado por iniciativa própria. A grita foi ainda maior porque, ao ser anunciado o pregão, em abril, apareceu o valor de R$ 1,4 milhão —confusão que depois a Casa atribuiu a um erro de digitação.
O TCE (Tribunal de Contas do Estado) e o Ministério Público de Pernambuco expediram uma recomendação a gestores públicos locais para que só mantenham licitações relacionadas a necessidades essenciais. Os órgãos aconselharam a suspensão de contratações para festas, eventos e shows.
No Paraná, a Prefeitura de Piraquara acatou orientação do TCE para revogar um pregão de R$ 64 mil para adquirir medalhas e troféus para competições esportivas. Técnicos do tribunal lembraram que torneios estão parados em razão do distanciamento social e sugeriram que o valor fosse para a saúde.
Contratações de prefeituras e Câmaras Municipais no Maranhão, na Bahia e no Espírito Santo também foram brecadas por decisão própria ou após a intervenção de órgãos de controle, que defenderam a importância da contenção de gastos.
Na opinião do professor de gestão pública da FGV-SP Marco Antonio Teixeira, o princípio do interesse público precisa, mais do que nunca, ser levado em conta pelas autoridades. Ele, que também é cientista político, diz que “tudo precisa ser reavaliado à luz do que é mais urgente e indispensável” no momento.
“Esse tipo de contratação desperta mais atenção agora porque falta recurso para o que é essencial, que é o combate à pandemia”, afirma Teixeira. Para o docente, o controle de gastos deve valer inclusive para compras feitas periodicamente por órgãos públicos. “A crise está redefinindo a noção de prioridade”, diz.
Folha de S.Paulo

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