Associação de pecuarista ampliou em 790 vezes os descontos de aposentados do INSS em seis anos


Em um intervalo de seis anos, entre 2019 e 2024, a Confederação Nacional dos Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares Rurais (Conafer) registrou um crescimento de mais de 790 vezes nos descontos de aposentados e pensionistas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O valor acumulado no período atingiu R$ 688 milhões.

Ela e outras entidades foram alvo da Operação Sem Desconto, deflagrada no final de abril pela Polícia Federal (PF) e pela Controladoria-Geral da União (CGU), para investigar suspeitas de fraudes em descontos na folha dos aposentados e pensionistas do INSS. Procurada, a Conafer diz promover “uma extensa agenda de ações, programas e serviços em todas as regiões do país” e se coloca “à disposição da sociedade e dos órgãos de fiscalização” (leia mais abaixo).

Estabelecida desde 2011, em Brasília, a Conafer havia feito em 2019 apenas R$ 350 mil em descontos dos beneficiados do INSS. No ano passado, o número saltou para R$ 277,1 milhões. Com isso, a entidade respondeu por 10,5% do total das cobranças e foi a segunda que mais utilizou os recursos, atrás apenas da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag).

A Conafer é presidida por um pecuarista mineiro desde 2016, que assumiu a entidade um ano antes de firmar convênio com o INSS. O empresário Carlos Roberto Ferreira Lopes é dono da empresa de melhoramento genético de gado Concepto Vet e da holding Farmlands, sediada nos Estados Unidos. Ele também é sócio do quiosque Jaguar Produtos Artesanais, que vende artesanatos indígenas no Aeroporto Internacional de Brasília.

Segundo inquérito, o maior crescimento dos descontos feitos pela Conafer ocorreu de 2019 para 2020, em pleno período da pandemia. De um ano para o outro, ela promoveu uma elevação de 16.185% nas cobranças feitas, de R$ 350 mil para R$ 57 milhões.

Durante as investigações feitas pela CGU, foram entrevistados 1.242 beneficiários em todo País, sendo que 97,6% deles informaram não ter autorizado o desconto e 95,9% afirmaram não participar de nenhuma associação que fazia descontos em seus benefícios. No caso de 21 entidades, 100% dos entrevistados informaram não ter autorizado o desconto das mensalidades associativas.

No caso da Conafer, da amostra de 56 descontos avaliados pelo inquérito tratando da associação, todos os beneficiados afirmaram não ter autorizado a cobrança, e os entrevistados estavam domiciliados em 16 unidades federativas diferentes, indicando que não recebiam os serviços que deveriam ser prestados pela associação.

Questionada quanto às autorizações, a Conafer apresentou 15 documentos, mas 14 envolviam aposentados ou pensionistas que residiam em municípios diferentes de sua sede, “com distâncias que variam de 34 a 957 km”.

Ao Estadão a Conafer afirmou, por meio de comunicado, promover “uma extensa agenda de ações, programas e serviços em todas as regiões do país, levando aos seus associados agricultores familiares, na ativa e aposentados, benefícios importantes para o desenvolvimento no campo”.

Também afirmou que, por meio do Acordo de Cooperação Técnica que tem com o INSS, ela “assessora os seus associados no acesso ao pagamento de auxílios, pensões e aposentadorias, além de disponibilizar serviços digitais aos segurados, o INSS Digital”.

Ela se declara representante do segmento agrofamiliar brasileiro e que atua “diretamente na garantia dos direitos previdenciários de camponeses, pecuaristas, extrativistas, artesãos, pescadores, lavouristas, indígenas, quilombolas, posseiros, ribeirinhos, assentados e acampados em todo o território brasileiro”.

Esse trabalho, segundo a entidade, se materializaria “na assessoria ao acesso à aposentadoria; convênios com farmácias, mercados e clínicas médicas; assessoria jurídica; integração dos aposentados com projetos produtivos de horticultura e turismo para a melhor idade”.

As ações e projetos da Conafer atingem, segundo a associação, mais de 4,5 mil municípios no país, e a entidade também firmou acordo com o Quênia, na África, “para levar seu principal programa de biotecnologia para reprodução animal aos pecuaristas africanos”.

“Nossas ações em favor da agricultura familiar brasileira falam por si sós”, diz a nota. “Assim, a Conafer se coloca sempre à disposição da sociedade, dos órgãos de fiscalização e a quem possa interessar. Seguimos com nossa missão em favor da agricultura familiar brasileira.”

Na segunda-feira, 28, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) emitiu uma nota em que repudia a atuação da entidade “dentro dos territórios indígenas”. O comunicado diz que a organização lucrou desviando ilegalmente os benefícios de aposentados e pensionistas, “em grande parte de povos indígenas”.

Inquérito
A investigação da PF cita algumas vezes o nome de Lopes, presidente da Conafer, mencionando transações suspeitas de pessoas próximas à associação. Uma das movimentações financeiras trata de depósito feito por Renata Martins Costa de Siqueira, cunhada do servidor do INSS Jobson de Paiva Sales, para Cícero Marcelino de Souza Santos, apontado como assessor do presidente da Conafer.

O inquérito menciona também que Renata foi funcionária da Conafer entre agosto de 2020 e agosto de 2021, momento “contemporâneo à ‘farra do INSS’”, cita o texto.

A Conafer teria recebido mais de R$ 100 milhões do fundo do INSS, sendo que parte desse valor, R$ 812 mil, foi repassada a Lopes, “que, em seguida, direcionou a Cícero Marcelino, a Ingrid Pikinskeni (mãe do filho de Marcelino) e a algumas das empresas do casal”.

A trilha financeira apresenta mais indícios de fluxo suspeito de recursos. Entre janeiro de 2021 e setembro de 2022, Lopes transferiu R$ 474.693 para Ingrid e recebeu de volta R$ 746.050.

“Esse movimento de recursos de volta ao remetente sugere um possível ciclo de lavagem de dinheiro, no qual os valores recebidos podem estar sendo redirecionados para camuflar a verdadeira origem dos recursos”, explica o texto. “Esse comportamento, somado às ligações com associações de aposentados envolvidas em fraudes e com movimentações suspeitas de grandes quantias, reforça as suspeitas de irregularidades financeiras e desvios de dinheiro.”

Marcelino também é acusado de fazer repasse suspeito de recursos a um auxiliar-administrativo que, apesar de ter renda registrada de apenas R$ 1,5 mil, é sócio em duas empresas de José Carlos Oliveira, ex-ministro do Trabalho e Previdência e ex-presidente do Instituto Nacional de Segurança Social (INSS), durante a gestão do presidente Jair Bolsonaro.

Procurado pela reportagem, Oliveira, que mudou o seu nome para Ahmed Mohamad, não foi encontrado. Marcelino, Ingrid e Renata também não responderam.

Carlos Eduardo Valim/Estadão Conteúdo

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