Médicos paliativistas relatam preconceito após CPI da Covid

Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress
Um funcionário do Instituto Paliar atendeu o telefone e ouviu uma pergunta sobre o preço do curso de cuidados paliativos. Ele questionou se a pessoa do outro lado da linha tinha interesse nas aulas, mas ouviu uma resposta inusitada: “Quero saber por quanto vocês vendem esse certificado, porque esse bando de médico picareta da Prevent Senior deve ter comprado um de vocês”.

Dalva Yukie Matsumoto, oncologista do Hospital do Servidor Público e diretora do instituto, diz que a pessoa estava muito brava, xingou, gritou. A indignação é uma espécie de desconfiança que paira sobre o cuidado paliativo desde que o tratamento foi citado na CPI da Covid.

Em setembro, em meio às sessões no Senado, a Prevent foi alvo de denúncias sobre condutas antiéticas e anticientíficas. A operadora também foi acusada de reduzir oxigênio e indicar tratamento paliativo para pacientes que ainda tinham chance de sobreviver.

Matsumoto afirma que o preconceito com os cuidados sempre existiu e que a CPI da Covid só piorou a situação.

A forma como a CPI abordou os cuidados paliativos provocou críticas. Na ocasião, teve quem comparasse o tratamento com a eutanásia, como o senador Otto Alencar (PSD). Depois da repercussão negativa, Alencar afirmou que se expressou mal e que sua fala se referia exclusivamente aos casos que envolvem a Prevent.

Douglas Henrique Crispim, presidente da ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paliativos), afirma que os equívocos na CPI foram um desserviço para a área, mas que, ao mesmo tempo, as posições dos senadores são um sintoma da desinformação geral relacionada ao tema no Brasil, onde a prática ainda não é amplamente adotada.

Matsumoto lamenta as falas dos senadores. “Tenho alunos que trabalham tratamento paliativo na Prevent Senior e ficaram muito abalados porque os pacientes começaram a jogar pedra neles.”

Ela explica que o cuidado paliativo é indicado para qualquer paciente portador de uma doença grave, progressiva, crônica e potencialmente mortal. Não é destinado apenas a quem está no final da vida, mas a qualquer portador de uma condição que possa levar à morte e traz sofrimento.

“O cuidado paliativo deve ser feito em conjunto com outras medidas e caminha junto com outras especialidades. Não se trata de uma imposição, mas do direito que o paciente deve exigir, pois enfatiza o direito de uma vida digna. Se o indivíduo tem uma doença que diminui esse tempo de vida, que esse tempo seja digno. E se isso inclui a morte, que a morte também seja digna”, diz.

O médico André Cerqueira Comune, que trabalha no hospital Premier, afirma que o ruído em torno do assunto gerou desconforto desnecessário para uma de suas pacientes, que passou a desconfiar do cuidado recebido. “Acho que gera nas pessoas uma angústia do tipo ‘será que fizeram por mim tudo que era possível?”’

E aí entra outra questão: mesmo com todo o conhecimento atual da medicina, em algumas situações não há mesmo o que fazer —e a insistência pode provocar malefícios.

Crispim, da ANCP, diz: “O mesmo senador que estava criticando o uso de tratamentos que não funcionam, como a cloroquina, não entendeu que o cuidado paliativo é a arte de não usar aquilo que não funciona”.

“Para que eu vou mandar um paciente que está morrendo para uma UTI, para longe da família dele, se isso não vai funcionar? Isso está no mesmo nível da cloroquina. Você tirou a dignidade da pessoa no último momento dela. E ela não vai poder se defender, porque ela vai morrer depois”, afirma.

Para Luciana Dadalto, bioeticista e advogada, o temor é que toda a incompreensão leve ao aumento da distanásia, uso de recursos médicos fúteis que agregam apenas sofrimento a um paciente em estado clínico grave e irreversível.

Dadalto considera perigoso criar uma dicotomia entre cuidados médicos que visam à cura e cuidados paliativos.

“Se a gente fala para o público que toda vez que um médico disser que não há indicação de fazer um tratamento esse médico está fazendo ‘o que a Prevent fez’, nós vamos aumentar a distanásia”, afirma.

As abordagens equivocadas sobre cuidados paliativos não afetaram só pacientes, mas também suas famílias —que também fazem parte da preocupação dos paliativistas. E, mais uma vez, esse é um problema que já existia.

Faz parte do dia a dia de Carolina Sarmento, médica intensivista e paliativista, ouvir famílias que afirmam não querer ouvir falar de cuidados paliativos. “É um preconceito muito prevalente na população. As pessoas acham que é cuidar de morte, cuidar de quem está nos 48 do segundo tempo, de quem não tem cura. Isso não é verdade”, afirma.

Ana Carolina Capuano, coordenadora do serviço de cuidados paliativos do Hospital Brasil, afirma que sua área de atuação é relativamente recente. Em sua forma moderna, surgiu nos anos 1960, no Reino Unido. Aqui no Brasil, o movimento se iniciou apenas na década de 1990.
“Às vezes, até os próprios profissionais de saúde restringem a uma abordagem de fim de vida, quando não tem nada a ser feito, como se fosse uma sentença de morte”, diz Capuano. “Mas é um tratamento que visa promover uma qualidade de vida”, explica.

Ela afirma que não se trata de não fazer nada, mas de mudar a proposta do procedimento. Por exemplo, no caso de um paciente com câncer metastático, o que é viável?

“Não é mais o câncer que eu trato. Eu estou tratando do seu João, que é casado com a dona Maria, que quer ver o neto casar, mas que, dentro desse contexto, ser entubado ou reanimado é um contexto que fica fora da biografia dele, porque não vai resolver o problema de base”, diz.

“Nada é imposto”, afirma. “Se o paciente tem autonomia e está consciente, ele é a principal fonte de consulta. Agora, se ele não tem, é a família que será consultada.”

Capuano explica que o paliativo não é sinônimo de eutanásia, ou seja, o tratamento não acelera a morte e também é o contrário da distanásia.

No Brasil, a eutanásia é considerada crime. A distanásia, de acordo com o Código de Ética Médico, é antiética. E, entre as duas pontas, está o paliativo. “O cuidado paliativo entende que a morte é um processo natural. A morte faz parte da vida, e o tratamento é um movimento que resgata essa naturalidade e compreensão da nossa finitude”, diz.

O presidente da ANCP afirma que há evidências segundo as quais pacientes tratados com cuidados paliativos têm maior sobrevida, com maior qualidade.

“Não ter cuidado paliativo significa, cientificamente, morrer antes e morrer pior”, afirma Crispim. “A pessoa que vive confortável vive mais.”​
Isabella Menon e Phillippe Watanabe / Folha de São Paulo

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