Nova lei de improbidade cria ‘bônus-corrupção’ e pode gerar caos na Justiça, diz ministro do STJ

Foto: Dida Sampaio/Arquivo/Estadão/Herman Benjamin

O ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Herman Benjamin diz que a nova Lei de Improbidade Administrativa pode provocar um “caos judicial”, com uma série de pedidos de revisão de ações que tramitaram sob as regras anteriores.

A Lei de Improbidade foi flexibilizada na Câmara e no Senado, em tramitação encerrada no início do mês. O projeto foi sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro na terça-feira (26) e já entrou em vigor.

Benjamin, que é ministro da corte há 15 anos, participou de audiências nas duas Casas legislativas para discutir as mudanças. Crítico do texto aprovado, diz que as alterações vão blindar especialmente grandes corruptores, como empresas com contratos públicos.

Os apoiadores do projeto argumentaram ao longo da tramitação que era necessário mudar a lei para evitar abusos que recaíam principalmente sobre gestores de pequenos municípios, afastando da política quadros qualificados que tinham receio de processos.

Para o ministro do STJ, pegou-se carona nessa premissa para criar um conjunto de dispositivos que desmontam o alcance da legislação, criada em 1992.

Em entrevista à Folha, ele não poupa palavras para definir as mudanças.

Chama um dos trechos de “bônus-corrupção”, afirma que alterações tornam o trabalho do Ministério Público em muitas situações uma “missão impossível” e diz que se abre caminho para a não punição por meio da lei, por exemplo, para a tortura policial.

Diferentemente do que ocorre na esfera penal, a Lei de Improbidade não prevê a possibilidade de prisão, mas sim de perda de função pública, suspensão de direitos políticos e de ressarcimento de prejuízos em casos de violação de princípios da administração pública.

Benjamin teve papel importante em desdobramento da Operação Lava Jato, ao relatar no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) processo sobre pagamentos de empreiteiras à chapa Dilma Rousseff-Michel Temer na campanha presidencial de 2014.

Em 2017, essa ação foi julgada e rejeitada —o ministro foi um dos que votaram pela cassação do mandato.

Hoje, diz que o combate à corrupção “ganhou uma notoriedade na sociedade brasileira que não pode ser ignorado”. Para ele, isso deve ser feito “sem exageros, sem estrelismo, sem personalismo, sem injustiça”.

“Mas também não pode ser feito com omissão, com medo.”

O projeto aprovado, patrocinado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que é condenado em segunda instância por improbidade, uniu diferentes correntes políticas, como bolsonaristas, petistas e tucanos.

Duas coisas acontecem no dia em que qualquer lei é promulgada, por melhor redigida que seja: ela começa a envelhecer e começamos a descobrir defeitos, pontos que poderiam ser aperfeiçoados. É exatamente o caso da Lei de Improbidade.

Mas, no geral, o balanço que se faz é que foi realmente um marco divisor do nosso país. Tanto que é citada pelos organismos internacionais como um modelo para o mundo.

Espaço para reforma havia de sobra. Mas que tipo de reforma?

Precisava de atualização, primeiro, para incorporar mecanismos de combate à corrupção sofisticada, hiperorganizada e globalizada.

Segundo, para incorporar aspectos que foram incluídos pela jurisprudência, como nepotismo e ofensa aos direitos humanos.

Terceiro, para corrigir imperfeições que levassem a injustiças, sobretudo em seu artigo 11, que precisava realmente de uma atualização para impedir que ilegalidades simples se transformassem em improbidade. Separar o joio do trigo.

O problema é que, no resultado, essas duas prioridades iniciais que mencionei não foram adaptadas.
Foram colocados, sim, mecanismos de proteção para o pequeno administrador, que não conta com assessoria sofisticada.

Em alguns pontos, houve uma espécie de carona das grandes empresas no projeto de reforma [da lei] para dificultar ao extremo a identificação, a investigação e o processo de casos de improbidade.

A blindagem de grandes empresas corruptoras e ímprobas é o que se observa em boa parte.

Está dito o seguinte: “Sócios, cotistas, colaboradores de empresas não respondem pelo ato de improbidade que venha a ser imputado à pessoa jurídica, salvo se, comprovadamente, houver participação e benefícios diretos”.

Imagine provar que um presidente de construtora teve benefícios diretos [com uma fraude]. Que benefícios tem? Nenhum. O salário dele continua o mesmo.

Pode-se retirar a responsabilidade simplesmente porque não recebeu um benefício —que tem que ser direto.

Os exemplos mencionados [pelos apoiadores da nova lei] são sempre o pequeno prefeito e o pequeno vereador. Isso tem alguma relação? Não. É a mão visível e invisível das grandes empreiteiras do Brasil.

Para praticar um ilícito, empreiteiras atuam em consórcio, de forma solidária. Para a responsabilização, será preciso usar fita métrica e de outros instrumentos para identificar a porção [de responsabilidade] de cada uma. Isso é impossível.

Rouba à vista e ressarce a prazo, em modestas 48 prestações. É uma regra que vale da Odebrecht ao pequeno vereador. E atenção: sem juros. Diz apenas: “Corrigida monetariamente”. Se não pagar uma multa de trânsito, tem juros. Aqui, não.

Há um dispositivo que é uma aberração, não existe em lugar nenhum do mundo, que é o “bônus-corrupção”.

[A lei diz:] “O juiz unificará eventuais sanções aplicadas com outras já impostas em outros processos. (…) No caso da continuidade de ilícito, o juiz promoverá a maior sanção aplicada, aumentada de um terço, ou a soma das penas, o que for mais benéfico ao réu.”

Ou seja: tudo que for além do “um terço” ou da maior pena aplicada é bônus. [O sentido é:] Pode continuar fazendo, não há sanção. É aberrante.

Como pode uma lei, aprovada em plena pandemia, não ter uma palavra sobre as aberrações de improbidade praticadas durante a pandemia? [Poderia] criar agravantes, novos tipos.

Mas ao contrário: boa parte das investigações que estão sendo feitas agora, na pandemia, na CPI [da Covid], não vão poder ser processadas com base na Lei de Improbidade.

O artigo 11 [da lei original] trata de princípios da administração pública. Enxugaram os dispositivos e saem, por exemplo, casos que já estavam reconhecidos na jurisprudência.

O policial que tortura um preso: o STJ passou a entender nos últimos anos que isso configurava improbidade administrativa.

Agora, como [o texto] ficou limitado, em tese, deixou de ser. O torturador poderá ser julgado no penal, mas não por improbidade. Isso viola a lógica de todo o sistema jurídico.

Outro exemplo: genocídio contra os índios. Quem não entrega medicamentos, não vacina os indígenas, para matá-los.

É uma calamidade. É tortura, genocídio, exercício impróprio da medicina. Aquele rol da CPI vai ser [processado] no penal, mas dificilmente encontrará assento nesse artigo.

Foi um comportamento gravíssimo a ponto de disparar uma CPI e de levar ao indiciamento de agentes públicos, mas não caracteriza improbidade administrativa?

Talvez seja o mais impressionante de todos [o trecho que exclui da Lei de Improbidade os partidos políticos].

Para os servidores públicos, para os corruptos, para as empresas, a lei foi enfraquecida, com vários mecanismos de blindagem. Já no caso dos partidos, haverá um vácuo, que deixa ilicitudes gravíssimas sem punição, exceto a penal.

Vamos ficar com um buraco negro no combate à corrupção: os partidos, com recursos literalmente bilionários, ficam imunes ao sistema legal existente para combater esses comportamentos e atos.
É o oposto do que existe em outros países.

Imagino que vários desses dispositivos novos serão levados ao Supremo Tribunal Federal porque, em uma leitura superficial, incitam questionamentos de natureza constitucional.

Em 1988, pela primeira vez o texto constitucional disse que atacar os cofres públicos é incompatível com o Estado social de Direito. E elevou a probidade administrativa ao patamar constitucional, algo que nunca havia ocorrido.

Considerando as mudanças postas aqui, certamente questões constitucionais serão levantadas.

Falta simetria: o servidor público que não apresentar sua declaração de Imposto de Renda perde o cargo. Agora, quem praticar atos graves que atentem contra os direitos humanos não perde aqui nessa lei.

Essas questões todas trazem perplexidade também de natureza constitucional. Mas quem delibera sobre isso é o Supremo.

Se uma licitação é fraudada [atualmente], não há necessidade de se elaborar laudo pericial para se identificar dano porque ele é presumido.

Aqui, invertem: para todos os dispositivos relacionados a licitações, o Ministério Público terá que provar “perda patrimonial efetiva” [resultante da irregularidade].

O que se colocou foi a exigência de uma prova diabólica [improvável de ser obtida].

A multa civil foi praticamente inviabilizada como mecanismo de dissuasão de ilícitos.

O policial que parava caminhoneiros e cobrava R$ 50 de cada um, se for pego, será em um caso. A multa civil dele agora será o “acréscimo patrimonial”: R$ 50.

Isso é um retrocesso inacreditável. A multa civil não tem fim ressarcitório. Tem duas finalidades: que os outros pensem “isso custa caro” e também para que o infrator não volte a praticar atos assemelhados no futuro.

Agora, o prazo de prescrição será de oito anos a partir da ocorrência do dano. Quem melhor esconder seus ilícitos —e sabemos que as grandes empresas são as que têm mais condições— e estiver internacionalizado tem uma grande possibilidade de sair ileso.

Há baques também na prescrição intercorrente, que não ocorre hoje. É a chamada prescrição retroativa, que só ocorre no direito penal —e brasileiro.

O que justifica? Uma coisa é alterar as hipóteses para que pequenas irregularidades ou simples infrações formais não sejam consideradas improbidade. Outra é criar todo um sistema processual de favorecimento dos corruptos e ímprobos.

Espero estar errado, mas o que se espera é a instalação do caos. Porque, mesmo nos casos em que não houver o direito, petições serão apresentadas, requerendo benefícios. É o caos para os juízes.

Levamos 20 anos, para a maioria das questões complexas da Lei de Improbidade, para que o Superior Tribunal de Justiça uniformizasse a jurisprudência. Em alguns casos, foi só recentemente.

Agora, vem uma lei que é uma bomba de hidrogênio no sistema atual com alterações que são em número muito maior do que o número de dispositivos existentes na atual.

É uma filosofia não revelada. Quem lê a lei vai ver que proteger o pequeno prefeito e o pequeno vereador que pratica uma ilegalidade formal pode ter justificado o objetivo inicial da lei. Seria justo e legítimo. Mas deixamos esse objetivo lá atrás.

São dezenas de dispositivos que favorecem, com nome e sobrenome, as grandes empresas, conglomerados econômicos.

Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin, 64
​É ministro do STJ desde 2006. Antes, foi promotor e procurador no Ministério Público de São Paulo. De 2014 a 2017, foi ministro do Tribunal Superior Eleitoral. É mestre pela Universidade de Illinois (EUA)

Felipe Bächtold/Folhapress

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