Referência, virologista choca colegas com adesão a teses bolsonaristas sobre Covid

Foto: Eduardo Knapp/Folhapress/

Em 12 de março de 2020, quando a Covid-19 ainda era vista por muitos como menos do que uma gripezinha, o virologista Paolo Zanotto publicou um artigo no jornal Folha de S.Paulo defendendo que autoridades decretassem com urgência medidas duras de distanciamento social e alertando para o caráter devastador da doença. Menos de seis meses depois, em 8 de setembro daquele ano, ele estava no Palácio do Planalto junto do presidente Jair Bolsonaro, sem máscara ou distanciamento, defendendo o chamado “tratamento precoce” e sugerindo a criação de um “gabinete das sombras” para tratar de vacinas contra a Covid-19.

A conversão de Zanotto às teses preferidas do bolsonarismo com relação à Covid-19 surpreendeu mesmo colegas acostumados ao estilo imprevisível do biólogo, descrito como brilhante e ególatra. Professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, Zanotto, 65, é uma referência no estudo da evolução dos vírus, com 8.500 citações na plataforma Google Acadêmico.

Em sua longa carreira, estudou os patógenos responsáveis por algumas das principais doenças das últimas décadas, como Aids, Sars, dengue e gripe suína. Em 2016, foi um dos coordenadores de pesquisas sobre o vírus da zika, que causava microcefalia em bebês. Também esteve à frente de uma rede financiada pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) para mapear a diversidade genética dos vírus no país.

Roqueiro e amante do surfe, com cabelos compridos até o ombro, passou a chamar a atenção nos últimos anos não apenas pelo visual pouco convencional. “Ele é um dos mais competentes virologistas do país, trabalhou com as maiores autoridades do mundo em áreas como a bioinformática [processo que usa a tecnologia como ferramenta da biologia]. Porém, de uns dois ou três anos para cá, tomou decisões políticas radicais, e não sei como isso comprometeu suas ideias”, diz Mauricio Lacerda Nogueira, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Virologia.

Ambos atuaram durante 15 anos em diversas pesquisas, até romperem em abril do ano passado, quando Zanotto criticou uma pesquisa sobre os efeitos da hidroxicloroquina feita em Manaus por um grupo que incluía Nogueira.
O estudo concluiu que a droga, além de não fazer efeito contra a Covid-19, provocava alterações cardíacas perigosas.
Zanotto acusou a equipe de ter administrado doses altas em pacientes graves propositalmente para desacreditar o remédio.

Em redes sociais, chamou os pesquisadores de menguelianos, referência ao médico nazista Josef Mengele. Àquela altura, ele já havia chocado grande parte do meio científico ao se tornar defensor do chamado “tratamento precoce” –apesar de sua área de especialidade na virologia ser bastante específica, sobre o comportamento evolutivo do patógeno, sem relação direta com o combate a doenças.

Os defensores do chamado tratamento precoce contra a Covid apoiam o uso nos pacientes de medicamentos como cloroquina, ivermectina, zinco e vitamina D, já descartados pela comunidade científica por não demonstrarem capacidade de barrar a Covid, prevenir a doença ou tratá-la. Embora rejeite o rótulo de bolsonarista, Zanotto passou a ligar sua imagem à do entorno do presidente. Fez uma live sobre cloroquina com o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e a se alinhou a apoiadores do presidente em redes sociais, com críticas à Organização Mundial da Saúde (OMS) e à China.

No Facebook, publicou uma charge do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, com uma máscara estampada com a bandeira da China cobrindo seus olhos. A aproximação com Bolsonaro culminou na célebre reunião com médicos pró-cloroquina no Palácio do Planalto de setembro, cujas imagens foram divulgadas pelo site Metrópoles. Zanotto foi saudado pelo presidente com um gesto de continência e chamado a sentar-se à mesa pelo deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), que o recebeu com um tapinha nas costas. Terra é apontado como chefe do chamado “gabinete paralelo” contra a Covid-19.

“Presidente, o sr. tem uma tropa aqui de leões. Os leões precisam ser guiados por um leão também”, pediu o virologista no evento, organizado pelo Médicos Pela Vida, grupo que defende o tratamento precoce e do qual Zanotto é uma espécie de consultor informal. “Ele é capaz de se posicionar e trazer o conhecimento amplo da ciência atrelado à preocupação com o ser humano”, diz Antônio Jordão, coordenador nacional do grupo, que diz ter cerca de 14 mil médicos cadastrados.

Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, Zanotto diz que segue defendendo o distanciamento social, mas que sua posição “amadureceu” desde o início da pandemia. “Quando você vai vendo uma realidade, você tem que readequar. Você tem que ressignificar as coisas”, afirma. “Eu era e sou a favor das medidas de intervenção não-farmacológica [como distanciamento]. Mas se você não fizer isso de uma maneira muito inteligente, pode prejudicar pesadamente a economia e maximizar mortes. O equilíbrio entre as duas coisas é fundamental”, diz.

Ele afirma que um dos fatores que o levaram a defender o tratamento precoce é sua colaboração com médicos do Senegal, na África, região onde a hidroxicloroquina é usada para combater a malária. “Os senegaleses implementaram protocolo [contra a Covid], e como usavam muito hidroxicloroquina por causa da malária, estavam tendo sucesso”, afirma.

Também chamaram a atenção de Zanotto estudos feitos pela Prevent Senior com pacientes em estágio inicial de Covid-19 submetidos a esse tratamento, além de trabalhos do médico francês Didier Raoult. Estudo da operadora de saúde divulgado no ano passado defendeu o uso combinado de hidroxicloroquina e azitromicina, mas o próprio autor disse à Folha de S.Paulo que a forma como a pesquisa foi feita impedia que fossem tiradas conclusões sobre o uso das drogas contra o coronavírus.

Acusado de promoção indevida de medicamentos em seu país, Raoult é considerado por Zanotto “um grande cientista que tem sido atacado pelo lixo que infesta a academia, instituições governamentais e os meios de comunicação”. Mais importante, afirma o virologista, é que cientistas e médicos tenham liberdade para defender tratamentos que considerem adequados.

“Agora é todo mundo progressistazinho, operando numa maneira monocromática, com uma ideia só, que é uma batida de tambor. Isso é pavoroso para a humanidade”, afirma. Essa posição acabou aproximando-o do grupo Docentes Pela Liberdade, criado em julho de 2019, que reúne professores universitários de direita. “O professor Zanotto é um grande pesquisador, que sofre um caso clássico de perseguição. O Brasil tem um grande problema de não reconhecer as pessoas com notório saber como ele. É uma coisa cultural nossa, talvez por isso não tenhamos um Prêmio Nobel”, afirma o presidente da entidade, Ebenezer Maurilio Nogueira da Silva, professor de música da Universidade de Brasília (UnB).

Zanotto nunca foi formalmente ligado ao grupo e diz que hoje tem críticas a ele. Mas segue militando contra o suposto pensamento único de esquerda no ambiente universitário. “Há uma guerra cultural”, diz ele, que afirma estar na trincheira do Iluminismo anglo-saxão, influência burilada durante seu período de doutorado na Universidade de Oxford, na Inglaterra.

Do Reino Unido veio a inspiração para a sugestão do “shadow cabinet”, o gabinete alternativo formado pela oposição para fiscalizar o primeiro-ministro britânico. “Não tem nada de ministério paralelo, isso é uma criação desses senadores [da CPI]”. A defesa do tratamento precoce e de cautela com as vacinas recém-criadas contra a Covid foi custosa do ponto de vista pessoal, diz Zanotto.

“Recebo e-mails de pessoas que dizem: ‘você vai se ferrar’. Coisas bem horríveis. Inclusive colegas meus, pessoas com quem eu trabalhei, fazendo declarações bem pesadas”, afirma. Profissionalmente, também já houve consequências. Zanotto foi excluído da Plataforma Científica Pasteur USP, uma rede de pesquisadores ligada à universidade e à Fiocruz, que entrou em operação em março do ano passado.
“Ele tem o direito de defender o que quiser em caráter individual, mas a associação com a plataforma começou a nos causar desconforto. Não podemos ter alguém aqui que tome atitudes anticientíficas, se esta é uma plataforma científica”, diz Paola Minoprio, coordenadora do grupo.
Da mesma forma, o ICB distanciou-se de posições de Zanotto, embora o virologista continue dando aulas no instituto e fazendo pesquisas. Em nota no ano passado, o instituto disse que a defesa da hidroxicloroquina “é de inteira responsabilidade” do virologista.
Na última quarta-feira (9), Zanotto foi autorizado pela direção do ICB a se ausentar do país durante dois anos para ser professor visitante no British Columbia Institute of Technology, no Canadá, em uma pesquisa sobre purificação de água.
O contato com a instituição, diz Zanotto, começou no ano passado, e seu pedido de licença é anterior à polêmica sobre o “gabinete das sombras”. O instituto canadense afirmou, contudo, que a solicitação do virologista para trabalhar ainda está pendente e que ele não atuaria como professor, apenas pesquisador.
Dizendo-se perseguido, ele não esconde a mágoa com os colegas. “Os malucos aqui na USP falam que eu quero matar 500 mil pessoas”, afirma. “Mas eu não concordo com essa visão de que as pessoas precisam virar dois grupos e se matarem”.
Fábio Zanini / Folhapress

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