Entenda a militarização do governo Bolsonaro e as ameaças que isso representa

Foto: Reprodução

Capitão reformado do Exército, o então deputado federal Jair Bolsonaro voltou às frentes militares em busca de apoio para sua candidatura à Presidência da República em 2018. No governo, deu às Forças Armadas um espaço inédito pós-redemocratização, colocando generais em postos-chave para o país.

À ampla presença militar se somam declarações recorrentes tanto por parte de Bolsonaro e seus apoiadores, quanto por parte dos próprios generais que compõem o governo, ora exaltando feitos do período da ditadura e emitindo mensagens dúbias sobre o regime, ora atacando os demais Poderes.

Em recente entrevista à Folha, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, apontou que a militarização do governo civil é um dos sete sintomas de um processo de corrupção da democracia no país.

Entenda como a remilitarização do governo pode corromper a democracia nacional.

Como a participação militar no governo Bolsonaro se compara com a de governos anteriores no pós-ditadura? A Constituição Federal estabelece que cabe às Forças Armadas a defesa do país contra ameaças externas e, por iniciativa dos Poderes da República, da lei e da ordem. Não há previsão de atuação política por seus integrantes.

O professor Alcides Costa Vaz, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e coordenador do Gepsi (Grupo de estudos em política e segurança internacional), diz que a presença dos militares em ministérios foi reduzida com a criação do Ministério da Defesa, em 1999, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Até então, havia três ministérios separados para abrigá-los, o do Exército, o da Marinha e o da Aeronáutica.

As Forças Armadas permaneceram focadas no cumprimento de seus papéis constitucionais, até a instauração da Comissão Nacional da Verdade, criada em 2012 no governo de Dilma Rousseff para investigar crimes do regime militar.

“A partir do momento em que os termos dessa convivência se alteram, esse sentimento contrário à esquerda e uma expressão clara do antipetismo, toda uma perspectiva de natureza ideológica aflorou, se revigorou”, destaca Vaz, que é ex-diretor da Associação Brasileira de Estudos de Defesa.

Já outros especialistas ouvidos pela Folha discordam de que as regras democráticas foram aceitas pela instituição.

Para o professor de ciência política da UFMG, Leonardo Avritzer, autor do livro “Política e Antipolítica: a Crise do Governo Bolsonaro”, o elemento mais grave dessa conjuntura foi a revelação de que um tuíte do general Villas Bôas pressionando o STF em 2018 teve origem de uma reunião da cúpula do Exército.

Outro exemplo citado por ele é a nota do Clube Militar divulgada após a confirmação pela Câmara da prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ), em que afirmam que grande parcela da população tem saudades da ditadura. “O Clube Militar representa bem os militares brasileiros? É muito difícil dizer quem representa e quem não representa, mas claro que aquilo ali é uma expressão muito forte daquilo que se pensa [entre os militares]”, avalia ele.

“Então o problema é esse, ou seja, os militares brasileiros, pela história deles, pela maneira como eles formam pessoas nas escolas militares e pela maneira como eles se comportam estando no poder, não nos levam a achar que eles são parte da institucionalidade democrática do Brasil”, diz Avritzer.

Samuel Vida, advogado e professor de direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia), considera que o Brasil nunca chegou a ser uma democracia consolidada e que a militarização, por exemplo, sempre foi uma realidade para determinados grupos, particularmente as populações negras e indígenas

“Se nós analisarmos as políticas de segurança pública no Brasil, assim como se nós analisarmos a gestão dos conflitos no campo, (…) vamos encontrar uma presença militar, no sentido amplo, não só das Forças Armadas, mas também das polícias militarizadas que atuam nos estados e que é muito anterior a essa conjuntura. Ou seja, a militarização da política no Brasil é um fenômeno antigo quando você focaliza nas comunidades indígenas e negras.”

​Qual o espaço das Forças Armadas no governo Bolsonaro? Além de escolher como vice o general Hamilton Mourão, Bolsonaro também nomeou generais para ministérios. O general Walter Braga Netto, por exemplo, é o primeiro a comandar a Casa Civil, desde 1981, quando Golbery do Couto e Silva deixou o cargo.

Além dos postos no alto escalão, do início de seu mandato até julho de 2020, Bolsonaro tinha aumentado em 33% a presença de militares da ativa no governo, com mais de 2.500 integrantes em cargos comissionados em 18 órgãos. Dos 21 ministros de Bolsonaro, seis são das Forças Armadas.

Se confirmada a nomeação do general da reserva Joaquim Silva e Luna para a Petrobras, mais de um terço das estatais federais controladas pela União terão comando militar.

Na última quinta-feira (25), o presidente também decidiu que o almirante Flávio Rocha deve acumular a chefia da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) e o comando da Secom (Secretaria de Comunicação Social), hoje chefiada pelo empresário Fabio Wajngarten.

Quais são as pautas pró-militares do governo? O presidente Bolsonaro tem sido fiel à promessa de ampliar o armamento no país e não tem feito cortes ao orçamento do Ministério da Defesa como em outras áreas.

No primeiro dia do ano de 2021, por exemplo, ao sancionar com vetos a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), que serve como guia para o Orçamento, o governo preservou os principais projetos estratégicos das Forças Armadas, entre eles o de uma Escola Superior de Defesa.

Os militares também foram poupados na reforma da Previdência, preservando privilégios em relação a outros grupos de trabalhadores.

Em outro episódio corporativista, diante da queixa de militares, o presidente voltou atrás dois dias após editar uma norma que acabava com a promoção por critério de antiguidade para o posto de coronel —o último antes da patente de general no Exército.

​Quais as consequências da militarização do governo para a democracia? Para Vera Karam, professora de direito constitucional da UFPR e pesquisadora do CNPQ, ao integrar o governo civil os membros das Forças Armadas podem imprimir uma lógica antidemocrática à gestão, sem que haja necessidade de um golpe.

“Esses militares que hoje ocupam postos no governo também se alimentam dessa memória da ditadura militar para justamente imprimir uma racionalidade antidemocrática, de exceção”, diz.

Doutora em filosofia e presidente do Instituto Liberal do Nordeste, Catarina Rochamonte, que é colunista da Folha, diz que a presença notória dos militares, especialmente no Ministério da Saúde, indica que Bolsonaro quer nomear pessoas servis e que há um processo de ‘venezuelização’ do Brasil.

“Estamos entrando num chavismo à direita, porque na Venezuela a coisa começou assim.”

Para Samuel Vida (UFBA), a militarização da política vai além do governo Bolsonaro.

“Não se pode pensar a militarização apenas a partir do momento que o general Pazuello é nomeado para a Saúde, ou outros generais para outros postos. Esse é um fenômeno de agudização, de exacerbação, de uma prática que já vem de longa duração sendo tolerada quando os atingidos são negros e indígenas.”

Como a interferência na gestão da Petrobras e a nomeação de Pazuello para o comando da Saúde, um general da ativa, entre outros episódios, refletem nas Forças Armadas? Professor titular sênior da Ufscar (Universidade Federal de São Carlos) que estuda as Forças Armadas, o cientista político João Roberto Martins Filho afirma que a cobertura da imprensa passou da esperança de que os militares poderiam ter uma atuação técnica e capacidade de tutelar o presidente para a constatação de que isso é impossível.

“A sociedade está mais ou menos farta dessa, vamos dizer, da entrada maciça dos militares no governo e há muito pouca evidência de que eles querem sair”, diz.

Como estratégia para tentar diminuir a vinculação dos integrantes do governo das Forças Armadas, há pressão para que Pazuello adiante sua aposentadoria e passe a reserva —como fez o ministro-chefe da Secretaria de Governo, o general Luiz Eduardo Ramos—, mas ele já sinalizou que não pretende fazer isso.

Quais as consequências da declaração do general Villas Bôas para o relacionamento entre os Poderes? Em recente entrevista para um livro, o general Eduardo Villas Bôas revelou que a cúpula do Exército, então sob o seu comando, articulou um tuíte de alerta ao Supremo antes do julgamento de um habeas corpus que poderia beneficiar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2018.

Lula acabou tendo o pedido negado pelo plenário do Supremo e, no dia 7 de abril, foi preso e levado para Curitiba. Deixou a prisão 580 dias depois, após o STF derrubar a regra que permitia prisão a partir da condenação em segunda instância.

O professor Vaz classifica como muito grave a revelação de que a cúpula do Exército participou da redação daquela mensagem.

“É o sintoma de uma politização que, neste caso, é nefasta, porque de alguma forma ela fere pressupostos fundamentais. É como você legitimar, em nome de um posicionamento político, a quebra, o rompimento das regras mais estruturais do processo democrático e da convivência e harmonia entre os poderes”, afirma.

João Roberto concorda. “Essa postura de se colocar como um Poder da República, que responde, que dialoga, que pressiona o Poder Judiciário, que julga o Judiciário, que julga os políticos, ela é uma postura extremamente nociva e anticonstitucional. É claríssimo isso. Não está previsto na Constituição”.

Desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, a tese de intervenção das Forças Armadas a partir do artigo 142 da Constituição foi evocada em diversos momentos. Apesar de tal interpretação já ter sido rejeitada pelo Supremo, o que sua presença no debate público representa?

Em momentos de pressão, Bolsonaro costuma radicalizar o discurso na tentativa de fidelizar a sua base de apoio mais fiel e relaciona a democracia do país à vontade das Forças Armadas.

Em maio de 2020, por exemplo, manifestantes bolsonaristas usaram faixas com uma menção em postagem em rede social pelo presidente ao artigo 142 da Constituição, que trata do papel das Forças Armadas na República, alimentando uma série de discussões.

Apoiadores extremistas do presidente afirmavam que esse trecho da Carta dá respaldo para uma eventual intervenção militar, tese repudiada por instituições como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a Câmara dos Deputados.

Esse trecho da Constituição disciplina o papel dos militares no país. Diz o seguinte: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. ​

Para especialistas ouvidos pela Folha, falas de generais que integram o governo, assim como a declaração de Villas Bôas, mostram que a visão de um poder moderador tem apoio na instituição.

“O mais preocupante é que eu acho que a maioria dos generais vê as Forças Armadas como um poder moderador. Embora as Forças Armadas não contemplem um golpe de estado tradicional, elas partem da ideia de que são mais capazes que os civis de resolver os problemas para o país”, diz João Roberto.

Samuel Vida também acredita que haja uma legitimação crescente de que militares são adequados para resolver problemas.

“A gente sabe que o treinamento militar para resolver problemas é todo dirigido pela lógica da violência. A democracia exige exatamente outro tipo de lógica, do diálogo, da tolerância, da escuta do outro, da negociação, da busca por alternativas.”

Em 2020, o número total de policiais e militares eleitos aumentou em todo o Brasil. A quantidade de comandantes de cidades com origem em forças de segurança cresceu 39% em 2020 na comparação com a eleição municipal de 2016.

Alcides Vaz completa que faz parte do etos militar a visão de guardião da pátria, pelas funções onstitucionais que exercem, mas há uma extrapolação nefasta quando lideranças das Forças Armadas julgam ter credibilidade e legitimidade para dizer o que é bom ou não para o país.

“Essa sensação com que a gente convive agora: há ou não há um espectro de uma intervenção militar; Quando isso ocorre num governo de uma pessoa que fala abertamente disso, que decanta isso, de fato são fundamentadas as razões de preocupação sim”, diz.

O apoio de militares ao governo de Jair Bolsonaro deve continuar em 2022? Até o momento, a previsão é a de que esse apoio será mantido no pleito no qual o presidente buscará a reeleição. Embora não esteja claro o que pode acontecer caso Bolsonaro perca as eleições, a análise de especialistas é que, caso isso ocorra, as Forças Armadas devem voltar aos seus deveres constitucionais.

Estadão Conteúdo

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente esta matéria.