ONU dá início à Assembleia Geral e celebra 75 anos de aniversário

O PRESIDENTE JAIR BOLSONARO ESTREOU NA ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS NO ANO PASSADO, COM DISCURSO AGRESSIVO. FOTO: ALAN SANTOS/PR

 Sob circunstâncias extraordinárias, devido à maior epidemia do último século, começa nesta terça-feira 15 mais uma edição da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), com programação até 30 de setembro, em Nova York, nos Estados Unidos.

O evento vai reunir 193 países para discutir diversas questões da política internacional, com o tema “O futuro que queremos, a ONU que precisamos: reafirmando nosso compromisso coletivo com o multilateralismo”.

Foi no evento que, no ano passado, o presidente Jair Bolsonaro disparou ataques contra governos críticos à situação da Amazônia, em um agressivo discurso de cerca de meia hora a representantes de outras nações.

Uma das tradições da Assembleia é exatamente o momento em que as autoridades de cada país sobem ao púlpito para defender seus ideais, firmar compromissos e apresentar resultados. Chamado de “debates de alto nível”, esse período terá início na semana que vem, em 22 de setembro. Como é praxe, o Brasil será novamente o primeiro a falar.

Em 2019, o mundo assistiu a uma sequência de discursos incendiários que retrataram a tensão global daquela conjuntura. 

Na crise sanitária deste ano, os líderes internacionais foram convidados a falar por vídeo gravado. Assim, enquanto nos anos anteriores os chefes de Estado aproveitavam a viagem para fazer reuniões bilaterais, nesta edição esses encontros devem ser reduzidos, já que boa parte dos representantes não se fará presente.

JAIR BOLSONARO DISCURSA NA ASSEMBLEIA GERAL DA ONU, EM NOVA YORK, NO ANO PASSADO. FOTO: ALAN SANTOS/PR

Mas não faltam assuntos importantes a serem tratados, mesmo de longe. O principal deles é a coordenação de ações em conjunto contra a Covid-19, especialmente nas iniciativas de parceria entre países mais desenvolvidos para abordar os impactos da doença nas regiões menos favorecidas.

No período entre a abertura oficial da Assembleia, nesta terça, e os discursos de alto nível na semana que vem, os países também se reúnem para uma programação diversa. 

Já no primeiro dia, a ONU publica o documento “Perspectivas da Biodiversidade para 2020”.

De acordo com a entidade, mais de um milhão de espécies de seres vivos estão em risco de extinção e dois bilhões de hectares de terra estão degradados. Além disso, a atividade humana já alterou de forma significativa e negativa 85% dos pântanos, 66% dos oceanos e 50% dos recifes de coral.

Ao longo da semana, haverá ainda sessões sobre temas como o crescimento econômico sustentável, a manutenção da segurança internacional e a promoção dos direitos humanos. 

Na segunda-feira 21, a ONU fará um evento de comemoração dos 75 anos de seu aniversário, com o pronunciamento do seu secretário-geral, o português António Guterres, no mandato de 2017 a 2021. Além dele, jovens escolhidos na Plenária da Juventude, que ocorreu em 9 de setembro, também devem discursar na celebração.

No dia 30 de setembro, após os discursos de alto nível, a ONU vai realizar o Encontro de Cúpula sobre Biodiversidade. Em 1º de outubro, uma reunião de alto nível festejará ainda os 25 anos da adoção da Plataforma de Pequim, declaração de 1995 que trata da promoção dos direitos das mulheres e meninas. Por fim, em 2 de outubro, uma plenária deve levantar diálogos sobre a eliminação total das armas nucleares.

75 anos de acordos e tensões

A ONU nasceu oficialmente em 24 de outubro de 1945, após a 2ª Guerra Mundial e os assombros do nazismo. A entidade surgiu a partir da Carta das Nações Unidas, elaborada meses antes por 50 países. A primeira Assembleia Geral ocorreu em 1946 e, desde então, acontece anualmente.

A entidade é separada por órgãos fundados em sua criação: a Assembleia Geral, o Conselho de Segurança, o Conselho Econômico e Social, o Conselho de Tutela, o Tribunal Internacional de Justiça de Haia e o Secretariado das Nações Unidas.

Há também 26 setores ligados à ONU, como programas, agências e fundos. Entre eles, estão a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

Apesar dos esforços pelo diálogo, a ONU viveu impasses em seus 75 anos de história. 

Já nos primeiros anos, os dois principais atores políticos globais da época azedaram suas relações: Estados Unidos e União Soviética. Após alguns anos unidos contra Hitler, na Alemanha, estadunidenses e soviéticos passaram a ter relações mais hostis em agosto de 1945, com o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, no Japão.

Doutor em Ciência Política e professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Roberto Goulart Menezes conta que a rivalidade entre EUA e União Soviética paralisou por décadas os trabalhos do principal órgão da ONU, o Conselho de Segurança, voltado para os conflitos internacionais. Os acordos pela paz ficaram comprometidos até 1991, por conta da Guerra Fria.

As disputas entre as nações não acabaram nos anos seguintes. Ainda há, por exemplo, profundos conflitos territoriais, como entre Palestina e Israel; bloqueios econômicos dos EUA sufocam países como Cuba e Venezuela; relações de escravidão moderna vitimam homens e mulheres de países menos desenvolvidos; e os mais ricos do mundo só aumentam a concentração de suas riquezas.

Para Goulart Menezes, apesar de não superar um cenário dramático de desigualdades e de conflitos, a entidade colaborou com avanços à convivência entre as nações.

“Se a gente for olhar a história, não é uma história de derrotas não. É um espaço de tensionamento e de expressão da ordem internacional desigual”, comenta.
“O diálogo Norte-Sul teve como um dos principais palcos a Assembleia das Nações Unidas, onde se denunciava o colonialismo e as desigualdades entre as nações”, afirma o professor.

Entre os feitos da ONU enumerados pelo pesquisador, está o reconhecimento formal do princípio de igualdade soberana entre os países, segundo a Carta das Nações Unidas.

O Artigo 2, no item 1, que trata da “autodeterminação dos povos”, é descrito pelo professor como um dispositivo que influenciou de forma fundamental em processos de descolonização e de libertação nacional em países da Ásia e da África.

Outro ponto elencado pelo professor é a fundação do Movimento dos Países Não-Alinhados (MNOAL), em 1961, no seio das Nações Unidas. O fórum agrupa atualmente 120 países, a maioria africanos, asiáticos e latinoamericanos, com o propósito de combater o desequilíbrio de poder entre as grandes potências e os povos da periferia global.

Goulart Menezes também cita a criação da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), em 1964. Foi neste âmbito que surgiu o sistema geral de preferências, idealizado para que mercadorias de países em desenvolvimento tivessem um acesso privilegiado aos mercados dos países mais favorecidos. Na prática, são taxas e benefícios cedidos pelos países ricos para que as nações pobres avancem nas etapas do processo de desenvolvimento. 

Ele acrescenta o acolhimento da questão palestina em 1975, por meio da instituição do Comitê sobre o Exercício dos Direitos Inalienáveis do Povo Palestino, após votação na Assembleia Geral. O Comitê organiza reuniões e conferências internacionais, para implementação de programas que assegurem aos palestinos o direito à independência, sem interferência externa.

Em 1986, acrescenta o professor, a ONU aprovou a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, descrito por ele como essencial para respaldar a luta do países do Sul global, os mais pobres, pelo acesso à água, ao saneamento, à moradia, e pela defesa de seus recursos naturais.

Mais recentemente, complementa, a ONU também foi vitoriosa na deliberação da Agenda 2030, em 2015, e no Acordo de Paris, de 2016. Na Agenda 2030, foram estabelecidos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, que incluem acabar com a fome, a pobreza e a deterioração da natureza. No Acordo de Paris, foram tratadas metas de redução de emissão de gases nocivos ao clima.

Contudo, um dos desafios da ONU é o seu financiamento. Apesar de ser mantida por contribuições de todos os seus membros, a entidade tem os Estados Unidos como principais doadores. Foram 10 bilhões de dólares doados à ONU pelo governo americano em 2018, cerca de ⅕ do orçamento total da organização. O valor corresponde ao resultado de um cálculo que considera a renda nacional bruta e o tamanho da população.

Conforme analisa Goulart Menezes, os Estados Unidos usam esse financiamento como um mecanismo de coerção, bloqueando as verbas à medida que as decisões da ONU fogem aos interesses da Casa Branca. Em 2017, por exemplo, o presidente Donald Trump anunciou sua saída da Unesco, acusando o organismo de trabalhar contra Israel; neste ano, rompeu com a OMS com queixas de favorecimento à China.

De saída da presidência da Assembleia Geral, o diplomata nigeriano Tijjani Muhammad-Bande insiste que a ONU é o canal mais viável para soluções conjuntas à maior crise global dos últimos tempos: “A ONU é a melhor opção para coordenar uma ação multilateral à Covid-19”, afirmou.

Sucessor no cargo, Volkan Bozkir, da Turquia, vai na mesma linha em defender que a Assembleia Geral é o lugar onde todos os Estados-membros têm voz igual. Uma discussão priorizada por ele, em entrevista à UN News, é o acesso à vacina contra o coronavírus. “Será um bem comum global, compartilhado equitativamente?”, indaga. 

Na mesma entrevista, o novato no comando da Assembleia chega com um apelo óbvio, mas que ainda parece ter a necessidade de ser lembrado, mesmo após 75 anos de Nações Unidas: “É hora de união”.
Fonte: CartaCapital

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