Pandemia nos cortiços de São Paulo e as mortes (in)visíveis em uma cidade que ninguém quer ver


É temerário que a pandemia do coronavírus seja utilizada para novas ações de criminalização, higienismo e interesse imobiliário

Em meio à pandemia do coronavírus, infelizmente, já era previsível que as maiores taxas de mortalidades para 100 mil habitantes pela Covid 19 se concentraria nos bairros mais pobres da região central e intermediária da cidade de São Paulo, onde há alta incidência de moradias precárias em cortiços. Os distritos do Pari, Belém, Brás e Santa Cecília têm o índice superior a 100 mortos/100 mil habitantes, enquanto que a média da cidade é 59 mortos/100 mil habitantes. Além do grave problema da desigualdade social e habitacional que atinge grande parcela da população na região central, a pandemia escancara, de forma cruel, uma alta taxa de letalidade; vale apontar que, no centro da cidade, há um grande número de pessoas em situação de rua que apresentam elevado risco de morte pela covid 19.

Por outro lado, os distritos da periferia, como Brasilândia, Sapopemba, Parelheiros e Grajaú, apresentam os maiores índices de contaminados e mortos pela pandemia, chegando a um índice cinco vezes maior, se comparado aos bairros de alto padrão.

Os cortiços na cidade de São Paulo

Embora precários, desde o final do 19 os cortiços destacam-se como a mais antiga alternativa habitacional dos trabalhadores na cidade de São Paulo. Sua exploração indevida sempre possibilitou lucros elevados aos intermediários que lucram cobrando aluguel de milhares de pessoas que se amontoam em imóveis degradados ou caindo aos pedaços; nesses espaços, há um único banheiro, tanque e chuveiro para dezenas de pessoas, cômodos insalubres e sem janelas, corredores estreitos e sufocantes.

Não há muitas informações sobre a realidade dos cortiços, mas há um importante levantamento realizado pela Fipe, em 1994, portanto, há mais de 25 anos, sobre cortiços na cidade de São Paulo que estimou a existência de 23.688 imóveis encortiçados que abrigavam 160.841 famílias, totalizando 595.110 pessoas, ou seja, 6,2% da população paulistana da época. Nessa pesquisa, foram encontradas famílias com média de 3,3 pessoas. Não há na base de dados do IBGE nem de outros institutos uma conceituação precisa dessa modalidade habitacional, impossibilitando que essa alternativa de moradia seja dimensionada nos recenseamentos.

Quando chamados para solucionar algum sério problema de saúde pública, historicamente, os órgãos públicos quase sempre transformaram os locais de moradia dos pobres e os cortiços em alvo de remoção ou expulsão.

Desde o início do século 20, sob alegação que essas moradias eram locais de propagação de surtos de doenças, a cidade de São Paulo passou por um processo de higienização e embelezamento, expulsando milhares de pessoas de moradias coletivas. São práticas higienistas recorrentes e muito conhecidas, como foi o caso da demolição dos edifícios São Vito e Mercúrio, em 2011, os quais foram estigmatizados pela imprensa como “cortiço vertical” ou “treme treme”. A demolição desses edifícios era parte do plano de reurbanização do Parque Dom Pedro II, e levou à expulsão de mais de mil famílias do local.

Outra tentativa de “modernização” por meio de práticas higienistas aconteceu a partir de 2017 – e ainda está em curso – com a implantação da Parceria Público e Privado (PPP) do Centro, em Campos Elíseos, região conhecida como “Cracolândia”. Nessa localidade, a Prefeitura agiu sem autorização legal e chegou a demolir paredes em cima dos moradores, ferindo e expulsando-os do local.

É temerário que a pandemia do coronavírus seja utilizada para novas ações de criminalização, higienismo e interesse imobiliário, ao invés de solução habitacional aos moradores de cortiços.

Apesar da incontestável precariedade, a realidade dos cortiços é pouco visível na metrópole por serem moradias unifamiliares adaptadas internamente para essa modalidade habitacional. Por trás de um pequeno portão discreto de acesso à rua, há corredores que levam a grandes cortiços que abrigam dezenas de domicílios. Ao contrário da favela, eles pouco se destacam na paisagem urbana, porque o alto adensamento e a precariedade estão invisibilizados.

Ainda que de forma pontual, as gestões municipais de Luíza Erundina (1989/1992) e Marta Suplicy (2001/2004) tiveram atendimento e construção de habitação de interesse social no próprio local do cortiço. Essas experiências apontaram que há alternativas para solucionar esse tipo de problema.

Morar nas áreas centrais

A história do centro da cidade de São Paulo está repleta de disputas entre os pobres que buscavam localização próxima do trabalho e o setor mais abastado que se enriqueceu às custas da valorização imobiliária e enobrecimento da região. A presença dos pobres no Centro sempre foi bastante conflituosa e entendida por gestores públicos e setores conservadores como fator de desvalorização imobiliária e desqualificação ambiental.

Contraditoriamente, o Centro é um território que atrai e expulsa os pobres por meio de projetos gentrificadores e higienistas, como se a retirada dos pobres da região central fosse sinônimo de prosperidade e desenvolvimento urbano. Essa perspectiva tira o foco da especulação imobiliária e da omissão do Estado, buscando construir uma ideologia preconceituosa que criminaliza a pobreza e estigmatiza os encortiçados como culpados pelos problemas de saúde pública na cidade.

A culpabilização é como uma mordaça que dificulta qualquer resistência ou forma de organização por direitos por parte dos implicados. Recentemente, com intuito de criminalizar a luta pelo direito à moradia digna dos trabalhadores de baixa renda no centro da cidade, um promotor de justiça chegou a propor a remoção de todas as ocupações da área central, sem exigir nenhuma contrapartida do Estado para efetivação do direito à moradia das famílias afetas pela ação.

Os trabalhadores de baixa renda costumam buscar moradias nas áreas centrais das cidades não apenas porque é onde se concentra a maioria dos trabalhos informais e formais, mas também para evitar grande dispêndio do salário, perda de horas no trajeto entre moradia e trabalho, além da proximidade de hospitais de tratamentos especializados e outros serviços de saúde. No entanto, devido à insuficiência da renda e por não conseguirem atender às exigências do mercado formal de locação de habitação, grande parte desses trabalhadores tem como única alternativa os cortiços.

Pesquisas acadêmicas e de órgãos públicos mostram que a moradia em cortiços possui em média cerca de 12 m² com a função de cozinha, sala e quarto, para uma composição familiar média de três pessoas.
Vale ressaltar que nos últimos anos surgiu uma nova modalidade de coabitação que combina “exploração de moradia com exploração de trabalho” que são as moradias encortiçadas, onde vivem imigrantes, destacadamente de origem boliviana; nesses locais, eles moram e trabalham em espaços restritos, submetidos a condições análogas ao trabalho escravo, especialmente no ramo de confecção.

Outra característica perversa que se destaca é a exploração da locação. Pesquisas revelaram que a locação habitacional mais cara por metro quadrado na cidade de São Paulo é a de cortiços. No mercado formal da locação habitacional, o valor mensal do aluguel corresponde a aproximadamente 0,6% do valor do imóvel, enquanto no mercado específico dos cortiços, o explorador lucra mensalmente até mais de 3% do valor do imóvel. Hoje um cômodo de 12 m² em um cortiço no Centro está em torno de R$ 900,00, correspondentemente ao valor próximo de R$ 75,00/m², enquanto, conforme o SECOVI, as locações de residências em abril de 2020, de 1 a 3 dormitórios, variavam entre os valores R$ 14,07/m² nos bairros populares e R$ 40,80/m² nos bairros de classe média alta; no Centro essa variação fica entre R$ 21,71 m² e R$ 31,59 m².

O alto comprometimento da renda familiar com as despesas dos aluguéis faz com que as famílias não tenham disponibilidade de recursos para as necessidades com Saúde e Educação. Há uma grande disparidade de situações vividas por moradores de cortiços do Centro, que pagam caro para morar mal, enquanto vê-se a existência de grande número de imóveis vazios ou abandonados aguardando valorização imobiliária. Isso expressa os interesses especulativos, isto é, a grande concentração imobiliária nas mãos de poucos proprietários, além dos casos de litígio judicial familiar.

Indignados com essas contradições, os movimentos de trabalhadores sem teto passaram a realizar de forma organizada ocupações de edifícios que não cumprem a sua função social e, que em geral, não pagam o IPTU. Diferentemente da grave situação dos cortiços, os edifícios ocupados pelos movimentos de moradia têm sido referência de inclusão social e de autogestão predial nesse momento da pandemia da Covid 19, na medida em que apresentam exemplos significativos de solidariedade de cuidados para evitar a contaminação e evitar a fome.

Isolamento social e cuidados essenciais

As características específicas dos cortiços impedem a adoção das recomendações dos especialistas da área da saúde. Com famílias de, em média, três pessoas dividindo cômodos de 12m², é impossível praticar o isolamento social necessário para se proteger da contaminação da Covid-19. Além da dificuldade imposta pelas características físicas, há dificuldade em manter o isolamento social porque uma parte do comércio e serviços públicos estão funcionando e as pessoas precisam trabalhar. Além de ineficiente por ter deixado milhões de pessoas sem acesso, a política de renda emergencial é insuficiente para que aluguel e subsistência sejam mantidos.

Com o agravamento do desemprego e da informalidade, aumentam as famílias que precisam de auxílio para moradia e alimentação e, com iniciativas públicas incipientes, a única alternativa é descumprir o isolamento. Sem espaço e sem renda, essa população fica totalmente exposta aos riscos da Covid-19.

A concentração das mortes por Covid-19 na região central está diretamente associada à precariedade da moradia. Se algum morador do cortiço se contamina, é questão de tempo para que todos os demais também se contaminem. Dado que há ausência de recursos e de estrutura para cumprir o isolamento, acessar serviços de saúde de qualidade e manter a alimentação, a possibilidade de cura é quase nula.


Benedito Roberto Barbosa – advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo, coordenador da Central de Movimentos Populares e doutorando e pesquisador do Laboratório de Justiça Territorial da UFABC ABC/LabJuta.

Juliana L Avanci – advogada e coordenadora do Programa Moradia Digna do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, conselheira Municipal de Habitação do Município de São Paulo e mestre em Planejamento e Gestão de Território pela UFABC.

Luiz T Kohara – membro da coordenação do Centro Gaspar Garcia de direitos Humanos, assessor do Centro de apoio e assessoria a Inciativas sociais (CAIS), colaborador da Rede BrCidades e doutor em Arquitetura e Urbanismo. Por: CartaCapitital

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