Hacker diz que não editou mensagens e que Manuela fez ponte dele com Intercept

Foto: Dida Sampaio/Estadão
Em depoimento à Polícia Federal, um dos presos na terça (23) sob suspeita de ter hackeado celulares de autoridades, Walter Delgatti Neto, 30, afirmou que obteve o contato do jornalista Glenn Greenwald, do site The Intercept Brasil, por meio da ex-deputada Manuela d’Ávila (PC do B), e que não editou as mensagens de membros da Lava Jato antes de repassá-las. O teor do depoimento dele foi revelado nesta sexta (26) pela GloboNews. Um dia antes, a Folha havia revelado que, nesse mesmo depoimento à PF, Delgatti disse que encaminhou as mensagens a Glenn de forma anônima, voluntária e sem cobrança financeira. Manuela, que concorreu como candidata a vice-presidente na chapa encabeçada por Fernando Haddad (PT) na eleição de 2018, confirmou ter intermediado o contato entre o hacker e Greenwald. Segundo o depoimento, Delgatti procurou Greenwald por conhecer sua atuação no vazamento de documentos secretos dos EUA, no caso de Edward Snowden. O compartilhamento com o Intercept, segundo o preso, foi voluntário e não envolveu pagamento. Delgatti relatou que o primeiro hackeamento que fez foi do promotor Marcel Zanin Bombardi, de Araraquara (SP), que o havia denunciado por tráfico de medicamentos de uso controlado. Na conta do aplicativo Telegram do promotor, Delgatti encontrou um grupo chamado “valoriza MPF [Ministério Público Federal]”. Pela conta de um procurador membro desse grupo, o suspeito disse que conseguiu o contato do deputado Kim Kataguiri (DEM-SP).

Acessando o Telegram de Kataguiri, ainda segundo o suspeito, ele obteve o número do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Entre os contatos de Moraes, Delgatti obteve o do ex-procurador-geral Rodrigo Janot e, pelo Telegram dele, chegou aos números dos procuradores da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, entre eles Deltan Dallagnol, Orlando Martello Júnior e Januário Paludo. De acordo com o suspeito, as invasões foram realizadas de março a maio deste ano, e o material foi enviado ao Intercept no Dia das Mães (12 de maio). “[Delgatti disse] que pode afirmar que não realizou qualquer edição dos conteúdos das contas de Telegram das quais teve acesso; que acredita não ser possível fazer a edição das mensagens do Telegram em razão do formato utilizado pelo aplicativo”, consta do depoimento. “Através da agenda do Telegram do procurador Deltan Dallagnol teve conhecimento do número de telefone utilizado pelo ministro Sergio Moro; […] que não obteve nenhum conteúdo das contas de Telegram do ministro Sergio Moro”, continua o depoimento. O suspeito contou à polícia que, por meio da agenda do Telegram de Dallagnol, teve acesso aos números de juízes do TRF-2 (Tribunal Regional Federal da 2ª Região), como Abel Gomes, e não se lembra de ter invadido celulares de policiais federais que atuam em São Paulo. No pedido de prisão, o Ministério Público afirma que foram vítimas, além de Moro e Gomes, um juiz federal e dois delegados da PF.

Disse também que entrou nas contas de procuradores da operação Greenfield, que atuam em Brasília, mas “não encontrou nada ilícito no conteúdo das conversas”, sugerindo que, devido a essa avaliação, não as copiou. Delgatti deu detalhes de como chegou a Manuela d’Ávila para conseguir o contato de Greenwald. Ele relatou que conseguiu o número do celular da ex-deputada na lista de contatos da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), e, “por sua vez, conseguiu o telefone da ex-presidente Dilma através da lista de contato do Telegram do ex-governador Pezão [MDB-RJ]”. O suspeito afirmou que não armazenou nenhum conteúdo das contas de Dilma e Pezão e que não se lembra de como obteve o número do emedebista. “Na manhã do Dia das Mães de 2019, [Delgatti disse que] ligou diretamente para Manuela afirmando que possuía o acervo de conversas do MPF contendo irregularidades; que ligou para Manuela d’Ávila diretamente da sua conta do Telegram e disse que precisava do contato do jornalista Glenn Greenwald; que a princípio Manuela d’Ávila não estava acreditando no declarante, motivo pelo qual fez o envio para ela de uma gravação de áudio entre os procuradores da República Orlando [Martello Júnior] e Januário Paludo”, diz o depoimento. “No mesmo domingo do Dia das Mães, cerca de 10 minutos após ter enviado o áudio, recebeu uma mensagem no Telegram do jornalista Glenn Greenwald, que afirmou ter interesse no material, que possuiria interesse público.”

Em tese, segundo as leis brasileiras, não cabe nenhuma punição a uma pessoa que se omitiu ao tomar conhecimento de um ato ilícito. Nesse caso, mesmo que soubesse que um hacker tivesse cometido um crime, Manuela não poderia ser penalizada por ter deixado de denunciar o caso às autoridades. Segundo o entendimento jurídico, também não consiste ilicitude o fato de ela ter intermediado o contato entre Delgatti e Greenwald. Delgatti afirmou que começou a repassar ao jornalista os conteúdos por meio do próprio Telegram, mas, como o material era volumoso, mudou o método de envio. “Assim, criou uma conta no Dropbox [que permite compartilhamento de arquivos online], enviou o material e repassou a senha para Glenn Greenwald; que em nenhum momento passou seus dados pessoais para Glenn Greenwald; que Glenn Greenwald ou qualquer jornalista de sua equipe conhece o declarante; que nunca recebeu qualquer valor, quantia ou vantagem em troca do material disponibilizado ao jornalista; que o material disponibilizado ao Glenn Greenwald foi obtido exclusivamente pelo acesso a contas do Telegram”, continua o depoimento. Delgatti afirmou que entrou no Telegram do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), “tendo acesso apenas a sua agenda do aplicativo”, mas que não tem registros desse ataque. O suspeito negou que tenha acessado as contas do aplicativo da deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), do ministro da Economia, Paulo Guedes, ou de outras autoridades do governo. Conforme o depoimento, Delgatti disse que os outros três suspeitos presos pela PF —Gustavo Henrique Elias Santos, 28, Suelen Oliveira, 25, e Danilo Marques, 33— são seus amigos de infância e em nenhum momento repassou a eles a técnica usada para invadir os telefones. Nesta sexta, a Justiça prorrogou por mais cinco dias a prisão dos quatro.

MENSAGENS E A LAVA JATO

Quando as primeiras mensagens do Intercept vieram à tona, em 9 de junho, o site informou que obteve o material de uma fonte anônima, que pediu sigilo. O pacote inclui mensagens privadas e de grupos da força-tarefa no aplicativo Telegram a partir de 2015. As mensagens obtidas pelo Intercept e divulgadas até este momento revelam que o então juiz Moro, por exemplo, indicou ao procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, uma testemunha que poderia colaborar para a apuração sobre o ex-presidente Lula. O ex-juiz, segundo as mensagens, também orientou Deltan a incluir prova contra réu da Lava Jato em denúncia que já havia sido oferecida pelo Ministério Público Federal, sugeriu ao procurador alterar a ordem de fases da operação e antecipou ao menos uma decisão judicial. Nas conversas, Moro ainda se posicionou contra investigar o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Caso haja entendimento de que Moro estava comprometido com a Procuradoria (ou seja, era suspeito), as sentenças proferidas por ele podem ser anuladas. Isso inclui o processo de Lula, que está sendo avaliado pelo STF. O artigo 254 do Código de Processo Penal afirma que “o juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes” se “tiver aconselhado qualquer das partes”. Já o artigo 564 afirma que sentenças proferidas por juízes suspeitos podem ser anuladas.

CONTATO COM A FONTE

O jornalista Glenn Greenwald, do The Intercept Brasil, disse que a fonte que repassou conversas de autoridades da Lava Jato ao site afirmou que não pagou pelos dados nem pediu dinheiro a ele em troca do material. Nesta sexta-feira (26), o jornalista, um dos fundadores do site, revelou à revista Veja trechos de diálogo que manteve com a pessoa que repassou as mensagens vazadas a ele. ​Greenwald afirmou que um dos primeiros contatos com a fonte aconteceu no início de maio deste ano e que foi apresentado a ela por um intermediário. Todos os contatos, afirmou, foram virtuais. O diálogo publicado por Veja ocorreu dias antes da primeira reportagem do Intercept com os vazamentos, em 9 de junho. Na conversa divulgada, Greenwald pergunta à fonte se ela leu reportagem da Folha a respeito da invasão por um hacker do celular do ministro da Justiça, Sergio Moro, ex-juiz da Lava Jato. A fonte responde que soube da notícia e negou que fosse o responsável pelo ataque ao aparelho do ex-magistrado. “Vi agora. Com isso a massa vai ficar quente, é bom ter cautela.” A fonte não revelada diz a seguir que seu modo de agir era diferente do citado naquele caso, já que, naquele ataque, foi divulgado que o hacker trocou mensagens fazendo se passar pelo ministro. “Nunca trocamos mensagens, só puxamos [o conteúdo]. Se fizéssemos isso ia ficar muita na cara”, escreveu a fonte. E continuou: “Nós não somos ‘hackers newbies’ [amadores], a notícia não condiz com nosso modo de operar, nós acessamos telegrama com a finalidade de extrair conversas e fazer justiça, trazendo a verdade para o povo.” As afirmações foram mantidas com a grafia original divulgada pelo jornalista. Na última terça-feira (23), quatro pessoas foram presas em operação da Polícia Federal deflagrada contra hackers suspeitos de invadir celulares de autoridades. Um dos detidos, Walter Delgatti Neto, afirmou em depoimento que repassou mensagens que obteve a Greenwald, de maneira anônima, voluntária e sem cobrança financeira. O jornalista e o Intercept têm dito que não vão se manifestar confirmando se foi Delgatti quem repassou os dados porque não fazem comentários sobre suas fontes.

ENTENDA A OPERAÇÃO

​Qual o resultado da operação da PF? Nesta terça (23), quatro pessoas foram presas sob suspeita de hackear telefones de autoridades, incluindo Moro e Deltan. Foram cumpridas 11 ordens judiciais, das quais 7 de busca e apreensão e 4 de prisão temporária nas cidades de São Paulo, Araraquara (SP) e Ribeirão Preto (SP). Os quatro presos foram transferidos para Brasília, onde prestariam depoimento à PF

As prisões têm relação com as mensagens trocadas entre Moro e procuradores da Lava Jato divulgadas desde junho pelo site The Intercept Brasil? Walter Delgatti Neto, um dos suspeitos presos na operação de terça, afirmou em depoimento que encaminhou as mensagens que obteve ao jornalista Glenn Greenwald, fundador do site, de forma anônima, voluntária e sem cobrança financeira. Não há até agora indício de que tenha havido pagamento pelo material divulgado, segundo investigadores.

Como a investigação começou? O inquérito em curso foi aberto em Brasília para apurar, inicialmente, o ataque a aparelhos de Moro, do juiz federal Abel Gomes, relator da Lava Jato no TRF-2 (Tribunal Regional Federal da 2ª Região), do juiz federal no Rio Flávio Lucas e dos delegados da PF em São Paulo Rafael Fernandes e Flávio Reis. Segundo investigadores, a apuração mostrou que o celular de Deltan também foi alvo do grupo.

Quando Moro foi hackeado? Segundo o ministro afirmou ao Senado, em 4 de junho, por volta das 18h, seu próprio número lhe telefonou três vezes. Segundo a Polícia Federal, os invasores não roubaram dados do aparelho. De acordo com o Intercept, não há ligação entre as mensagens e o ataque, visto que o pacote de conversas já estava com o site quando ocorreu a invasão

O conteúdo das mensagens será destruído, como chegou a afirmar Moro? Para especialistas ouvidos pela Folha, uma decisão nesse sentido cabe apenas ao juiz responsável pelo caso. O professor de direito processual penal da PUC-SP Cláudio Langroiva diz que o magistrado pode optar por manter todo esse material intacto e sob sigilo até que o processo tenha uma decisão final. Esses materiais, por exemplo, podem ser úteis tanto à acusação quanto à defesa ao longo de uma eventual ação penal. Outra possibilidade é o Ministério Público pedir o descarte de parte dessas provas antes da sentença, desde que ela já tenha sido periciada e que uma parcela de informações básicas continue armazenada

Folha de S. Paulo